quarta-feira, 23 de abril de 2014

ANTIGAS CIÊNCIAS DA CURA

                                
      Hoje apresentamos um texto de um autor não martinista, mas que escreve dentro do nosso ponto de vista e visão de mundo. Martin Lings (*Burnage, Lancashire, 24/01/1909 - 12/05/2005, em Kent) foi discípulo de René Guenon, e autor de inúmeras obras que nos ajudam a entender os motivos do colapso da sociedade atual. Lings é considerado um continuador de Frithjof Schuon. Muçulmano foi um grande especialista na história e doutrina do sufismo. Recomendamos enfaticamente os livros destes três autores citados.


                          ANTIGAS CIÊNCIAS DA CURA**


“Segundo os Purânas hindus (1), a doença física era desconhecida até uma fase bem adiantada da Dwâpara Yuga, isto é, a Idade de Bronze, a terceira das quatro eras. Com relação às antigas ciências da cura, que foram transmitidas desde tempos pré-históricos entre os vários povos, a função do "curandeiro" muitas vezes era simplesmente parte da função do sacerdote e, de qualquer maneira, a própria ciência estava sempre intimamente ligada à religião. Por esta razão, ela estava também mais ou menos vinculada às outras ciências antigas, cada uma das quais constituindo um ramo da religião, e todas estavam baseadas no conhecimento de certas verdades cosmológicas que, segundo a tradição, chegaram ao homem por inspiração e, em certos casos, por revelação.

Todas essas verdades são aspectos da harmonia do universo: constituem as correspondências entre o microcosmo, o macrocosmo e o metacosmo, isto é, entre o pequeno mundo do indivíduo humano, o grande mundo exterior e o outro mundo, que transcende ambos. Tomemos um exemplo cada planeta (isto é, aqueles planetas visíveis a olho nu que, juntamente com o Sol, perfazem sete) relaciona-se com um metal específico, com certas pedras, plantas e animais, com uma cor particular e uma nota na escala musical; cada planeta tem seu dia da semana e suas horas durante o dia, governa certas partes do corpo e corresponde a certas doenças; no plano psíquico, relacionam-se a certos temperamentos, virtudes e vícios; e, metafisicamente, correspondem a um dos Sete Céus e a certas Potências Angélicas, Santos, Profetas e Nomes Divinos.

Uma ciência nunca poderia chegar a englobar todos os mistérios do universo; há, por conseguinte várias e distintas ciências tradicionais da medicina, mas em geral a prática competente de uma dessas ciências pressupunha alguma compreensão não apenas de fisiologia, biologia, botânica, mineralogia, química e física (tratadas de um ponto de vista completamente distinto do das ciências modernas), mas também de astrologia e algumas vezes de música, assim como daquelas ciências que eventualmente são chamadas de ciências dos números e das letras, às quais devem ser acrescentadas a metafísica e a teologia, incluindo um vasto conhecimento prático de liturgia, tudo combinado com uma excepcional aptidão natural para a cura.

Embora admitindo exageros freqüentes, seria insensatez não acreditar em tudo o que a tradição transmitiu, em diferentes partes do mundo, sobre as curas notáveis efetuadas pelas antigas ciências. Mas, entre elas e a medicina moderna não há ligação. É verdade que um ramo da antiga ciência chinesa da medicina, conhecido no Ocidente como "acupuntura", e que ainda é largamente praticado na China e no Japão, tem sido adotado de uma maneira fragmentária por alguns médicos ocidentais, que foram convencidos de seu valor por sua extraordinária eficácia. Mas é bastante duvidoso que este ramo possa se tornar aceitável à generalidade do mundo médico moderno, pois ele se baseia em relações bem pouco evidentes entre distintas partes do corpo, relações estas que meras investigações experimentais jamais poderiam detectar e que a ciência moderna não poderia levar em conta.

Alguns dos médicos ocidentais que praticam a acupuntura tentam na verdade adaptá-la à medicina moderna, sustentando que ela deve ter surgido de experiências. Mas isso não passa de pura hipótese e, à parte o fato inegável da antiga abordagem da ciência, pelo mundo afora, ter sido radicalmente diferente da abordagem moderna, pode-se realmente conceber que é possível descobrir, por meio de simples experiências, que, por exemplo, para uma dor de estômago o tratamento deve ser aplicado num centro nervoso no dedão do pé? Ou que o fígado pode ser tratado via tornozelo, o rim através do joelho, o intestino grosso pelo cotovelo e assim por diante?

Independentemente de algumas raras intrusões, geralmente superficiais, de tais ciências na medicina moderna, e levando em conta certa continuidade entre o passado e o presente - no que diz respeito ao uso de medicamentos ela talvez seja maior do que se supõe -, a medicina moderna é o que ela alega ser: uma invenção puramente humana, baseada simplesmente nas experiências práticas do próprio homem.


(...)

Mas se em nossos dias a ciência médica escapou em vários sentidos do controle do homem, decididamente o aspecto mais sinistro da situação é que ela assumiu sua importância pseudo-absoluta atual pela usurpação em grande medida de algo que, de fato, concerne ao Absoluto.

O mundo moderno dedica ao tratamento dos corpos doentes uma soma incalculável de energia, que no passado era dedicada ao tratamento das almas enfermas. Os homens eram educados na consciência de que todas as almas eram doentes, salvo raríssimas exceções. Não é preciso dizer que os padrões modernos também consideram que muitas almas estejam enfermas e nós somos continuamente advertidos de que tanto o número de criminosos quanto os de loucos aumenta todo dia. Mas a grande maioria das almas - as dos honestos e sãos - é considerada hoje como possuidora de boa saúde, ou, de qualquer maneira, como boa o suficiente para não precisar de tratamento. Supõe-se que essas almas estejam mais ou menos imunes à deteriorização. Perdeu-se de vista o abismo que separa esta assim chamada "boa saúde" da saúde perfeita e, em geral, idéias sobre o que é a perfeita saúde da alma são bem vagas. Essas idéias também não parecem ter sido, via de regra, muito menos vagas nas gerações recentes, as dos últimos dois ou três séculos, cujo moralismo cada vez mais tolo e superficial iria acabar provocando uma reação de ceticismo amora!.

Por outro lado, se nossos antepassados menos recentes sabiam tão bem que suas almas estavam doentes, e se eles compreenderam tão bem a natureza da doença, foi porque sua civilização estava fundada na idéia da saúde psíquica e era dominada pelo conceito da alma perfeita. Eles tampouco estavam sós, pois não se pode sinceramente dizer que este conceito, estando baseado em princípios universais, tenha variado de um lado ao outro do Mundo Antigo, exceto onde a religião tenha se degenerado ao ponto de perder de vista o próprio fim de sua existência, que é acima de tudo reconciliar o homem com sua Fonte Absoluta, Eterna e Infinita. Onde quer que a religião mantenha este propósito em vista, a concepção da mais alta possibilidade humana permanece necessariamente a mesma; e levando em conta certas diferenças de formulação, as grandes religiões do mundo são de fato unânimes em afirmar que o aspecto essencial daquele que reconquistou o estado do Homem Primordial, readquirindo portanto a completa saúde da alma, é a consciência do "reino do Céu dentro de si": ele não tem necessidade de "buscar", pois já encontrou; nem necessidade de "bater", pois já se "abriu" para ele. E, através desta abertura, a alma humana, em forma de espelho, é capaz de refletir as Qualidades Divinas e ser, como foi criada, ‘à imagem de Deus’".

** Lings, Martin: Sabedoria Tradicional & Superstições Modernas, SP, Polar, 1998, págs 56 a 61.

Nota:

1. Coleção de livros sagrados hindus. (N. do T.)