sábado, 2 de maio de 2015

A ARTE DO SONHO por Paul Sedir **


                                                                    

                                                                              

A nossa mente interior  está  em constante relação com os mundos invisíveis; nós não nos apercebemos disto porque nos falta o instrumento transmissor.  É preciso então tornar  este registro mais fácil e  mais extenso.

Aqui vão dois métodos.

O primeiro é exterior: recomenda  uma série ou séries de exercícios graduados que, apoiando-se num conhecimento mais ou menos  verdadeira da máquina humana, harmonizam o seu  funcionamento  e  subtilizam as  suas sensibilidades. Aqui tudo depende da  ciência do treinador;  facilmente se cometem erros ao manipular organismos tão delicados e complexos. As desordens mais graves e mais tenazes podem suscitar por uma falta de diagnóstico, por uma hora mal escolhida, por um excitante  mal dosado, por uma falsa correspondência.

Sabemos ao que uma droga deve a sua virtude?  O seu uso pode ligar o nosso  sistema nervoso a poderes desconhecidos; conhecemos as terríveis conseqüências da morfina, da cocaína, dos licores alcoólicos. E todas estas substancias não trazem  uma força nova; a  sua ação é  simplesmente  despolarizante; elas retiram fluido de  um ponto do corpo para coloca-la num outro, de  modo que  o experimentador imprudente vê a sua saúde tornar-se precária e sua vontade impotente para governar os impulsos irresistíveis de seu ser vegetativo.

As mesmas críticas podem ser formuladas quanto a estas receitas pueris que a superstição popular emprega: comer maça com certos ritos, escrever nomes bárbaros sobre fitas, isso parece inofensivo. Mas é possível que uma imaginação aventurosa ou uma vontade fraca abram as portas a sugestões pouco sãs ou maníacas.

Quanto ao rito mágico propriamente dito, seja qual for o proveito que dele desejamos extrair, os inconvenientes existem na mesma medida. Incerteza quanto à qualidade do resultado obtido, risco de ilusões, dolo provável, violências exercidas  contra certos invisíveis, obrigações contraídas  inconscientemente com outros invisíveis, desobediência à lei divina, desequilíbrio pessoais podendo se estender ate  a doença física – tais  são,  em resumo, os escolhos contra  os quais se  despedaça a fortuna do magista.

Dirigir-nos-emos a estas escolas mais sábias e mais serenas, onde o aluno, após   haver alcançado o domínio do seu corpo físico, empreende o controle de  seu corpo fluídico pelas observâncias  respiratórias, e de seu corpo mental pela concentração ? Se ele obtém sucesso neste gênero de trabalho e se os frutos que ele  recolhe parecem mais nobres, mais sãos e mais duráveis, é porque  sua cultura tem  necessidade  de morticínios!

Restringir a respiração é aumentar a quantidade de sangue venoso. É, portanto, estancar a marcha evolutiva de uma multidão de glóbulos; é diminuir as trocas orgânicas; é sair um pouco da vida  animal.

Concentrar a atenção num  monoideísmo constante  é  construir diques contra os fluxos da associação de ideias. Mas sabemos nós, se a imagem mental que escolhemos para o exercício não é menos importante ou menos necessária do que  quaisquer das outras que deliberadamente rejeitamos ?

Por  outro lado não se atinge estas duas unificações, a dos fluidos e a das idéias, sem uma espécie de vampirismo exercido sobre o meio eletro-telúrico e sobre  o meio mental, análogo ao exercido por um financista muito hábil, que sabe atrair o dinheiro para os seus ativos. Isto é algo como se apropriar de algo que não é nosso e que exigirá um acerto de contas no futuro, sem  ter proporcionado no presente uma certeza sã e cabal.

O buscador prudente recusará então todos estes procedimentos de um artifício  mais  ou menos curioso, e se aterá a  algumas regras de puro senso, tais como, por exemplo, as que submetemos ao exame do leitor.

Deve-se preparar uma noite reconfortante a partir de um dia são e interiormente  sereno. A inquietude prejudica o sono. É verdade que nem sempre podemos domina-la  inteiramente. Para viver  de maneira sã é preciso  ter  um ideal, e para viver de  maneira  santa, é necessário o mais elevado dos ideais. Da mesma forma que um  trabalhador probo pode nutrir o seu corpo com mais higiene, aquele que vive  segundo um ideal torna-se um centro  atrativo de forças, de substâncias, de sentimentos e de vontades.

Ora, um ideal, seja qual for, é uma criatura viva. Ele necessita, como toda criatura, de alimentos corporais, afetivos e  intelectuais. Quanto mais  elevado, mais distante desta terra; mais a sua  evocação  demanda  esforços.

É preciso, então, inicialmente, concebe-lo de maneira pura, em seguida nutri-lo de maneira sã,
e depois encarna-lo com uma devoção séria, atenciosa, profunda e permanente. Esta é a mais bela das Grandes Obras.

Ademais, isto se opera naturalmente, pois a natureza é benigna desde que  nos atenhamos à constância. É preciso nada se permitir, nenhuma atitude, nenhuma palavra, nenhum olhar, nenhum movimento interior, nenhum ímpeto, nenhuma parada que não estejam conformes ao objetivo visado. Para isto, não é necessário manter-se fora da vida comum, muito pelo contrário, pois os temas mais imperiosos dos nossos deveres estão na família, no trabalho, na função social.  São essas observâncias que mantêm o nosso mental sadio, que nos conservam em  equilíbrio, e que fazem avançar mais rapidamente o nosso espírito.

Tal é a regra fundamental da qual dependem todas as prescrições detalhadas.

Vejamos como adapta-la ao objetivo que nos propomos: ter sonhos verdadeiros, claros, instrutivos e dos quais nos lembremos.


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O coração humano vive no plano onde quer viver. Se for de avareza,  fisicamente, ele viverá no  reino  espiritual da  avareza. Se ele tem o hábito da mentira, da fraude, da  dissimulação, a  mente se  tornará organicamente incapaz de  perceber  a verdade, seja de que tipo for. Para ter sonhos verdadeiros é preciso então, por uma  prática constante, transformar em si as tendências à  falsidade e  à mentira, em  atos de  conformidade com os  sentimentos, em sentimentos  submetidos ao exame da  consciência, em pensamento que sejam deduções justas dos sentimentos.

É preciso ter o hábito  de não ter outro querer secreto que não seja o que exprimimos pela palavra e pela ação. É preciso cumprir suas promessas. É preciso  saber ser  discreto sem  ser dissimulado. Assim, se fizermos de nossas forças físicas as obreiras de um coração que só quer a verdade; de nossas forças intelectuais a dianteira destas realizações sadias, todo o nosso ser se tornará um imã atrativo para o ideal ao qual oferecemos,  deste modo, um culto de  todas as horas. E este ideal desce até nós através dos espaços interiores; ele nos trata, nos conforta, nos restaura de nossas fadigas e recria, por  assim dizer,  todas as energias, até as do corpo de carne. E não traindo a confiança  de nenhuma  criatura visível, nenhuma invisível poderá trair a nossa. Nossos sonhos  tornam-se verídicos.   


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A nitidez de nossos sonhos depende das condições fisiológicas materiais e  espirituais.

É necessário que o agente invisível disponha de força nervosa em quantidade suficiente; por  conseguinte, na refeição da noite ingerir somente alimentos leves  e digeríveis; excluir os excitantes; deitar-se  o mais  cedo possível para que o repouso físico, quase completo à meia noite, deixe o cérebro livre por volta de uma ou  duas  horas da manhã.

É sempre mais sadio levantar-se bem cedo  do que ir dormir tarde.

É preferível que a cama esteja com a cabeceira voltada para o norte ou para o leste.  A cor das pinturas e dos tecidos  do quarto de dormir tem sua importância. O branco é saudável, mas dispersivo; o vermelho é muito excitante; o marrom é pesado. É melhor escolher, de acordo com seus gostos pessoais, os tons de cinza, amarelo, verde ou azul. Nem a nogueira nem o carvalho são recomendáveis. Se a opção for uma cama metálica, escolher o cobre.

Não devemos manter a luz acessa durante o sono; se não pudermos dispensa-la, coloca-la num quebra-luz  violeta ou malva, ou atrás de uma cortina  para que os seus raios  não incidam sobre a  cabeça  do adormecido.

Seria prudente não dormir com a janela aberta, contanto que  o quarto seja bem arejado durante o dia. Se não pudermos dormir  num  lugar  fechado, colocar uma cortina diante da janela.

Manter no quarto o mínimo possível de objetos de metal. Se os esposos têm cama comum é melhor que não mudem de lugar para conservar a direção dos intercâmbios magnéticos. (1)

Se as noites forem agitadas, servir-se do odor da madeira ou do gengibre, excluindo-se qualquer outro perfume.

Aqui vão, agora, algumas precauções psíquicas.

Que a inteligência seja lúcida durante a vigília; ela continuará a sê-lo durante o sono. Trata-se, portanto, de possuir plenamente o que chamamos de presença de espírito. E para isto exercitar-se da seguinte maneira:

1. Pensar numa coisa de cada vez: isso demora; é preciso calma, paciência;  compreenda que a verdadeira força  é tranqüila e não agitada;  traga  lentamente a atenção para o trabalho em curso; não se apresse, o tempo será recuperado mais tarde;

 2. Exercitar-se em mudar cada vez mais rápido de atividade;  em  distinguir numa vista  d´olhos  um grande número de objetos, ou detalhes  de uma roupa, de uma estante, as particularidades de uma rua;  aprender a ver, a observar com precisão.

3.  Cuidar para manter o sangue frio diante de um caso fortuito, de um acidente;  para ter sempre  prontos e a palavra e o  gesto justos.

O hábito assim adquirido  de  possuir-se plenamente confere à vontade um poder de controle ao qual ela não renunciará  mesmo durante o sono, o que evitará  que sejamos máquinas passivas  e nos permitirá mover-nos em sonho, tomar decisões, falar, agir. Todo um mundo desconhecido se abrirá diante de nós, todo um vasto  campo de possibilidades cativantes, de energias até então embrionárias se  desenvolverão em nós; a Natureza  assumirá uma nova significação, e o nosso ser total encontrar-se-á modificado, esclarecido, dinamizado.


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Vimos no capítulo precedente quais são as fontes dos nossos sonhos. De fato,  como já  explicamos, durante o sono só vemos as paisagens do país em que  habita o homem interior(2). São, por conseguinte, as predileções deste último que devem ser melhoradas; é para o socorro pessoal  que nos envia a  Providência  viva, por intermédio dos  seus agentes visíveis e invisíveis, que é necessário  torna-lo atento.

Pois a lei das  atrações que  rege a ordem física governa ainda a ordem hiper-física. O homem interior persegue igualmente no invisível os desejos que tentamos realizar na matéria. A paixão dominante busca satisfazer-se com tanto ardor no  sono quanto na vigília.  

Por conseguinte, deve-se tomar as seguintes precauções:

1. Antes de deitar-se, tomar fôlego, se é que podemos dizer assim; uma  recapitulação clara e concisa do dia permitirá avaliar o progresso ou o recuo,  quanto  à noite que  começa, a oração dominical contém  todos os  agradecimentos e  todas as solicitações  úteis,  já que  nosso  pão material  é  assegurado  quando o trabalhamos;  é o pão da alma  que urge ganhamos. Durante o dia é o esforço,  a provação e o sofrimento que  no-lo  garantem; no sono, é o sonho;

2. É preciso então, por alguns minutos, esquecer os seus problemas, os seus sofrimentos, entrar com um desejo profundo e simples no amor de Deus e na mente  do Mestre  sempre presente;  pedir-lhe a luz, e o meio de compreendê-la, o  favor  de lembrar-se dela  e a força  de  expandi-la: pois, repito, o sonho pode  nos instruir e  também nos permitir  prestar serviço a alguém;

3. Manter-se interiormente no maior abandono possível de si mesmo e de tudo  que a nós se refere, a fim de deixar a porta aberta  ao imprevisto do Alto, ao impossível humano, ao possível  divino;

4. Em último lugar, se prometemos rezar por um doente ou por um amigo que  sofre, é preciso faze-lo apesar  da própria  fadiga. Quando, além disso, o trabalho do dia foi muito duro, o Pai não exige longas orações: um ímpeto do coração basta, se bem que seja melhor formulá-la em voz alta.  

As precauções descritas acima serão de grande valia para lembrar-se dos sonhos.

Quanto mais puro for o nosso coração, mais ardente será o nosso desejo de luz, e  quanto mais o nosso interior confia em Deus, mais vívidas serão as impressões  noturnas.

Mesmo assim, aquele que se inicia nesta prática deve manter perto de si um lápis e papel; é possível, com um pouco de energia, despertar alguns segundos para anotar uma palavra sobre o sonho que acaba de ter. Em todo caso, é necessário, ao levantar-se, fazer um esforço de memória, calmo e tranqüilo, para escrever num registro que conservaremos, tudo  o que lembramos ter vivido durante a noite que termina. É necessário mencionar tudo, mesmo os detalhes mais imprecisos; uma palavra pode permitir a  reconstituição de uma cena. Por vezes há sonhos em dois  ou três planos que se imbricam, se desdobram e se reúnem  em seqüência.

Será bom, logo  ao  abrir os olhos, nos proporcionarmos alguns  minutos de  calma rememoração, durante os quais, por menos afeito que esteja o cérebro, as lembranças chegarão vívidas e precisas.

Nota:

1. Se este texto tivesse sido escrito hoje, com certeza, os celulares presentes na cabeceira da cama seriam incluídos nesta lista (N. de Pseudo-Sedir).

2. Grifo nosso (Pseudo-Sedir).

** Escrito originalmente em 1901. Retirado da  Revista “L´Initiation” N. 1, 2001
(versão em português publicado pela editora Gnosis, RJ). Tradução da editora Gnosis.                                      

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