AS
BÊNÇÃOS DA MORTE*
Por
Paul Sedir**
“LÁZARO, NOSSO AMIGO, DORME,
MAS VOU DESPERTÁ-LO.”
(João, 11: 11)
Se somos, de fato,
espiritualistas, se conformamos nossos atos a nossas crenças, a Rainha dos
assombros perde a nossos olhos seu prestígio de pavor e seu
halo de mistério.
Ela se torna a libertação, o passo à frente, a entrada em um mundo novo. Vemos
então chegar a ceifadora com toda serenidade; acolhemos com um sorriso sua
visita inevitável; pois é de Deus que ela obtém seu poder, e sua força é uma
das formas da força do Verbo. O medo que os homens sentem à sua aproximação, se
nenhuma embriaguez os subtrai a si próprios, é completamente físico e tem sua
origem na inércia da matéria. Os velhos sofrem mais desse medo do que os jovens
porque os espíritos corporais, habituados a este mundo, a esta luz, a esta
atmosfera, aos objetos familiares, temem perder toda essa vizinhança que lhes é
habitual, apreendem o desconhecido que pressentem e se agarram desesperadamente
a essa obscura casca que é sua casa. Mas o Eu conserva, em geral, mais calma, e
as últimas contrações, que impressionam dolorosamente os espectadores da
agonia, não são, na sua maior parte, senão automatismos totalmente físicos.
Os fenômenos da morte são, por assim dizer, desconhecidos. Uma tal
afirmação parecerá, sem dúvida, excessiva a pesquisadores como vocês, senhores,
que têm familiaridade com os ensinamentos das religiões e com os mistérios das
iniciações. Eis o que quero dizer. O lugar onde se efetua a partida das almas é
oculto; o ar do país dos mortos é malsão aos vivos. Certos pesquisadores
obstinados bem que puderam dele se aproximar e perceber alguma coisa através de
uma fenda no muro enquanto os guardiões estavam de costas; mas o que eles viram
é incompleto; eles apreenderam somente alguns detalhes isolados, uma silhueta
em meio à multidão, uma sílaba entre mil palavras. Apesar disso, o pequeno
informe parcial, incompleto, lhes bastou para construir um desses sistemas
admiráveis de onde tantos povos extraíram a coragem de morrer, o heroísmo mais
difícil de viver, e que nós estudamos ainda hoje com um espanto respeitoso.
Não quero incitá-los ao desdém com respeito a esses velhos rishis, esses
patriarcas, esses hierofantes cujo grande labor impõe a consideração; entendam
somente que a descrição exata e completa da morte não está escrita em lugar
algum. Dizem que as provas dos mistérios antigos consistiam na passagem
consciente do neófito através das Portas tenebrosas; sim, o iniciado conhece a
morte como se conhece uma cidade à visão de uma fotografia. Somente pode falar
sobre o que se passa no reino das sombras aquele que entrou pela porta; e
somente entra com legitimidade aquele que recebeu a chave da vida; esse é o
homem livre. Vocês só escutarão, portanto, esta noite, noções totalmente
elementares, embora eu creia que elas sejam exatas. Não lhes peço, aliás, para
aceitá-las sem controle, muito pelo contrário; e isso é possível, já que tudo é
verificável a quem peça ao Cristo que lhe instrua diretamente.
*
Há diferentes espécies de morte já que são incontáveis as formas da vida
e já que estas se sucedem, se substituem e se transformam todas mutuamente.
Quanto aos homens, pode-se distinguir as mortes interiores, espirituais,
psíquicas, e as mortes exteriores, fisiológicas. As “noites” do misticismo
católico são mortes; uma iniciação, um batismo comportam uma morte prévia, pois
são renascimentos. Mas quanto à morte corporal, ela consiste unicamente na
partida do espírito.
Assim, certos indivíduos vão e vêm, exercem sua profissão, em uma
palavra, parecem viver, mas seu espírito já deixou o corpo há muito tempo; é a
vida inteligente da matéria que continua a fazer a máquina funcionar. E quando
chegar a morte física, quando o espírito corporal, por sua vez, se for, somente
seus pais e seus amigos serão afetados, seu Eu dificilmente se dará conta.
Existem outros casos menos extraordinários nos quais o espírito de um
homem vivo é em parte exteriorizado no invisível à procura de um ser que ele
quer encontrar. Esse deslocamento, que pode produzir-se anos antes da morte,
não tem outros efeitos senão uma fraqueza física e mental mais aparente do que
no caso precedente, pois o sistema nervoso vegetativo não pode retomar sua
autonomia enquanto o espírito só se afastar parcialmente. De fato, é sobretudo
o espírito que causa fadiga nos invólucros, físicos e outros, dos quais ele se
serve para agir. Vê-se frequentemente um grande vigor corporal nos seres fracos
de inteligência ou privados de razão.
Quando a hora da
partida se aproxima, o anjo da morte – Azraël, o denominavam os Kabalistas,
Yama, dizem os brâmanes – desce até o quarto fúnebre. Para dizer a verdade, ele
próprio não vem; o taciturno mensageiro só aparece aos raros homens
suficientemente intrépidos para afrontar o brilho de diamante de seus olhos que
nunca se fecham, aos seres cujas movimentações revolucionam o mundo, aos
desconhecidos misteriosos cujo olhar pousou sobre as magnificências mal
entrevistas da eterna Luz. Em geral, é um gênio subalterno que se dirige à
cabeceira do moribundo. A seguir, dois outros espíritos se apresentam que
apontam o bem e o mal que ele fez em pensamentos, palavras e atos; enfim chegam
todas as criaturas para com as quais esse homem foi bom ou mau; todas estão lá,
desde o seixo até o deus, as folhas da relva, os animais, os humanos vivos e
mortos, os invisíveis, todos prontos a testemunhar ou a clamar por justiça.
É por isso que a agonia dos maus é tão penosa. O espírito se
sobressalta, sobretudo em suas regiões corporais; ele corre desesperado por todos
os cantos do corpo buscando ajuda; e, infelizmente, o amor daqueles que ficaram
é por demais pessoal e utilitário, em muitos casos, para lhe oferecer o consolo
de que ele tem necessidade. O moribundo só pode ser ajudado por uma força mais
calma e mais alta; ele a encontra, geralmente, nos auxílios prestados pela
religião.
Um dos efeitos notáveis das cerimônias religiosas é justamente o de
lançar uma ponte entre um determinado canto do visível e um determinado círculo
do invisível. Todas as religiões prescrevem ritos funerários; e se tivéssemos o
tempo de analisar esses numerosos códigos, juntaríamos muito rapidamente uma
pilha de documentos muito curiosos. Mas como separar o verdadeiro do falso?
Ao invés de estudar os usos de povos diferentes de nós pela época, pela
distância, pela mentalidade e pela natureza de sua evolução, habituados a
esforços que a dissemelhança dos meios invisíveis nos tornaria impossíveis,
olhemos o que está ao nosso alcance, o que está combinado para nós, para nosso
país, para nossos tempos e para os homens de nossa raça. Gostaria de lembrá-los
dos ritos do sacramento católico da Extrema-unção, de tentar extrair deles o
sentido e perceber seus efeitos sobre o pobre espírito desorientado, rejeitado
pela prisão deste corpo à qual ele
acabara por se habituar tão comodamente.
*
Ao entrar, o padre invoca primeiramente a paz sobre a casa e sobre seus
habitantes; depois ele dá o crucifixo ao doente para ele o beijar e recita
sobre ele a fórmula conhecida de mundificação: “Asperges me, Domine etc.” Se
for possível, ele o confessa, e lhe dirige algumas palavras de exortação. O
versículo iniciático: “O Senhor esteja convosco e com o vosso espírito” abre
uma longa súplica a Jesus-Cristo para a felicidade, a alegria, a saúde, a ajuda
dos anjos, o afastamento dos demônios e a santificação. A seguir, uma outra
fórmula pede ao Pai o envio de anjos protetores. Recita-se então os sete salmos
da penitência, cujo nome indica suficientemente o uso, e as litanias
correspondentes. Aqui o padre, por meio de três sinais da cruz, e impondo as
mãos, expulsa as forças diabólicas do doente em nome da Trindade e com a ajuda
dos santos. Ele mergulha o polegar no óleo santo e unge em cruz os olhos, as
orelhas, o nariz, a boca, as mãos, os pés, os rins, invocando sobre a função de
cada uma dessas partes do corpo a misericórdia do Senhor. Seguem o Pater, seis
responsórios para o socorro divino, e três Oremus, que pedem a saúde interior e
exterior.
Na agonia, se o moribundo não puder falar, o padre se coloca no lugar
dele e ora em voz alta em seu nome. Essas preces compreendem, entre outras
fórmulas, litanias especiais que invocam o socorro do Cristo pelas circunstâncias
análogas de Sua vida: Sua paixão, Sua morte, Seu sepultamento, Sua ressureição,
Sua ascensão. Depois uma espécie de comando é dada à alma do paciente em nome
das pessoas divinas, dos anjos e dos santos para partir deste mundo rumo a um
lugar de Paz, um pedido à clemência do Pai, quatro outras orações reiteram esse
pedido com apoio nos fatos análogos da história santa e da história da Igreja;
depois recitam-se os capítulos XVII e XVIII de João; enfim salmos e três outras
objurgações ao Cristo pelos méritos de Sua agonia.
Assim que a morte se aproxima, o padre invoca, em voz alta, próximo à
orelha do moribundo, Jesus e Maria, implorando-lhes para receber este espírito,
dar-lhe o repouso e ser misericordiosos para com ele.
Vejam, a administração do último sacramento comporta três fases. Uma
preparatória, na qual se purifica o lugar e o indivíduo; uma segunda,
evocatória, se ouso dizer, na qual o padre evoca Jesus, os anjos e os santos; a
ponte é lançada do alto até aqui embaixo. Em terceiro lugar vem o sacramento
propriamente dito, que consiste em uma magnetização superior. Enfim, o padre se
volta para Deus, recapitula seus pedidos e
faz deles como que um feixe, depois ele eleva seus agradecimentos, seu
reconhecimento e sua confiança.
Um homem tem necessidade de uma certa força: é o doente; um outro homem
possui a chave desse tesouro: é o padre. O primeiro permanece passivo; o que
ele faz nada mais é do que se colocar, pela confissão e pelo arrependimento, em
uma atitude moral de receptividade. O segundo o ajuda a tomar essa atitude e
lança um fio de transmissão da força solicitada: é a prece; ele o prende no
lugar mesmo onde ela nasce, isto é, Jesus; ele conta com a ajuda, para
estendê-lo, de intermediários benévolos, os anjos e os santos; ele o fixa no
polo negativo, o doente; a força passa e o operador faz com que ela seja
absorvida pelo paciente. Depois, ele agradece os auxílios, e os devolve e os
reenvia ordenadamente, ou seja, entre as mãos de Deus.
O procedimento pelo qual a Igreja assiste os agonizantes se resume
nisto: um homem treinado a viver em espírito, pela contemplação, seguindo o
caminho invisível de Jesus - o padre -, tenta por meio da prece elevar o
espírito do doente que se debate e manter seu espírito desamparado neste mesmo
caminho. Para isso ele utiliza a imagem luminosa e viva que cada um dos atos de
Jesus deixou na atmosfera segunda; ele aplica o sofrimento corporal do Salvador
ao sofrimento corporal do doente, a inquietude de Jesus à inquietude do doente,
o poder psicúrgico de um certo antigo profeta ao desespero do doente; ele evoca
os triunfos de Jesus: ressureição, ascensão, para tentar fazer o moribundo
sentir algum conforto com sua presença invisível.
Assim, a Igreja reconhece uma teoria muito antiga de um meio plástico e vibrante
onde se conservariam as imagens de todos os acontecimentos passados. Com
efeito, na medida em que um protagonista de um ato qualquer encarna a Verdade
nesse ato, a Vida desce para animá-lo, torna sua existência física fecunda e
perpetua seu reflexo nessa “imaginação” da terra onde os videntes podem
reencontrá-lo séculos mais tarde. Quando o realizador desse ato é perfeito e
poderoso como Jesus, os reflexos se multiplicam e possuem uma energia
particular, de modo que os homens que tendem para este modelo reencontram mais
rapidamente essas imagens e delas se beneficiam mais profundamente.
Tal é, em linhas gerais, o arcano da virtude dos sacramentos. Eles atuam
proporcionalmente à profundidade com a qual o fiel e o padre entram no lado
oculto do ato crístico que é a sua raiz. A forma sacramental contém sempre duas
forças: uma central, proveniente de Jesus, totalmente espiritual, mas
assimilável conforme a fé prática do sacerdote e do recipiendário; uma
exterior, fluidica, que não é senão a soma das vibrações acumuladas por todos
aqueles que fizeram os mesmo gestos e pronunciaram as mesmas palavras. Para que
a primeira dessas virtudes penetre a substância da alma e cure até mesmo o
corpo, é preciso a santidade do pontífice, o humilde desejo ardente do devoto.
Mas voltemos ao nosso assunto.
*
Para compreender o que se passa na morte, lembremo-nos de que no homem
certas forças vêm da terra, outras vêm do cosmos, outras enfim vêm de Deus
diretamente. A morte é tão-somente uma retomada, pela alma da terra, daquilo
que ela nos emprestara no nascimento. Se o restituímos de bom grado, não
sofremos. Se recusamos, haverá dilaceramentos inevitáveis, danos e lamentações
até que o defunto compreenda a sabedoria de uma resignação confiante. As
pessoas boas sofrem muito pouco; aqueles que, ao contrário, fizeram ídolos de
si mesmos e de suas qualidades experimentam o vazio de suas glórias. O corpo, o
duplo, os sentimentos, as funções mentais, a memória, a habilidade
profissional, os gostos particulares, tudo isso é retomado pelos deuses
terrestres para uma purificação, uma reparação, e para ser colocado em reserva
em um lugar especial para que possa servir mais tarde, seja àquele que já o
recebera em depósito, seja a alguém da mesma família espiritual. No que concerne
ao corpo físico, a inumação é preferível à cremação. Eis por que: cada
individualidade humana, uma vez que ela deve reger um dia uma parte da
Natureza, recebe, entre outros trabalhos, uma porção determinada de matéria
terrestre a evoluir, fazendo-lhe conhecer pela experiência o modo humano da
vida. Um átomo de carbono, por exemplo, trabalha como mineral, depois como
vegetal, depois como animal, segundo as diferentes qualidades da vida terrestre
em cada um desses três reinos. Ele terminará o seu ciclo entrando em uma
individualidade humana, seja pela alimentação, pela respiração ou qualquer
outra porta funcional, seja por outras vias hiperfísicas.
Todo um sistema de canais e de fios é estabelecido para trazer a cada um
de nós, de todos os cantos do mundo, as partículas materiais que nos são
destinadas. Assim, quando entro na padaria, o padeiro me dá, dentre todos os
seus pães, aquele mesmo cuja matéria primeira foi escolhida para mim dentre
todos os campos de trigo e dentre todas as espigas. O mesmo acontece com tudo o
que se incorpora na minha individualidade.
Ao nascer, cada homem recebe uma parte da massa total de substância
terrestre que lhe é atribuída desde a origem e que deve retornar à terra,
afinada pelo trabalho próprio da vitalidade humana. O quadrado de solo que
receberá o cadáver é fixado, também ele, antes que se nasça. Os motivos que
determinam o lugar da morte, o cemitério e a localização da tumba são apenas
aparências. É assim que se vê imigrantes, que passaram toda sua existência
longe, voltarem ao país natal somente para que seu corpo repouse lá onde o
solicitam as repartições ocultas da matéria.
Ademais, cada homem está conectado magneticamente a minerais, plantas e
animais. Eles nascem juntos e eles morrem juntos; não se deve dispersar o que
Deus reuniu. Se, portanto, se queima o cadáver, além do fato de que a liberação
dos elementos psíquicos é brutal e faz com que o duplo sofra e entre em pânico,
uma quantidade enorme de partículas espirituais recebe uma morte violenta, e
aquelas do solo, onde deveria ocorrer a inumação, esperam em vão o trabalho que
esperavam e se veem privadas de uma evolução legítima e de uma recompensa: a
luz própria da vitalidade humana que as células do cadáver deveriam lhes
comunicar. Há dolo, entrave à atividade natural e desconforto em um pequeno
canto do plano físico.
O embalsamamento deveria também ser evitado por motivos contrários. Ele
retarda a evolução, ele imobiliza o duplo; ele impede o jogo normal do retorno
das almas. Se o meu tempo não fosse contado, eu teria anedotas bem curiosas a
contar sobre múmias egípcias.
Certas providências poderiam ser tomadas quanto à inumação propriamente
dita, à fabricação do caixão, à construção do sepulcro. Mas tudo está previsto
por regulamentações administrativas; e, como não há leis injustas senão na
aparência, nosso primeiro dever é o de nos submeter, ainda que tenhamos que
sofrer um pouco.
É bom fechar os olhos do defunto: isso o separa do mundo; talvez, no
momento de dar o último suspiro, ele tenha entrevisto algum espetáculo que
nenhum indiscreto deve surpreender no fundo de suas pupilas doravante imóveis.
Os gênios de que falamos acompanham o cortejo fúnebre; outros seres
também, predadores invisíveis e defensores; frequentemente esses últimos são
cães, foi isso o que entreviram os bárbaros, que degolavam sobre o túmulo do
chefe seus animais de estimação; foi isso o que viram perfeitamente os
sacerdotes do Egito e da Índia. Mais do que se pensa, o cão é o amigo do homem.
O duplo flutua em torno do caixão e busca avidamente as emanações fluídicas
dos incensamentos, das aspersões, dos gestos sacerdotais e das palavras
rituais. É sempre útil mandar celebrar um serviço religioso, pelo menos dizer
sobre o corpo alguma prece. O ritual católico do funeral é extremamente
instrutivo para ser estudado.
Feita a inumação, o duplo permanece junto ao túmulo e o vigia, a menos
que um poderoso interesse o chame a uma outra parte. É assim que os fantasmas
das vítimas assombram os lugares em que elas perderam a vida, que o avarento
guarda seu tesouro, e o inventor, às vezes, suas fórmulas. Mas tais
manifestações, sobretudo quando elas apresentam um caráter de horror ou de
desordem, provêm principalmente de seres que não fizeram o bem, que acreditaram
somente na matéria, ou que não aprenderam a resignação. E suas inquietudes no
Além começam sua purificação. E por pouco que vocês tenham percorrido
coletâneas de fatos psíquicos, vocês sabem que esses fenômenos são frequentes.
Eu poderia lhes contar um grande número dos quais fui testemunha; vou citar
para vocês apenas um, que lhes mostrará como o duplo permanece algumas vezes
séculos preso à matéria.
Trata-se de um buscador de tesouros que conheci antigamente e que morava
em La Plata. Ele operava por meio da magia e com a ajuda de uma sonâmbula. Ele
soube da existência de subterrâneos debaixo de um estabelecimento religioso
abandonado e enviou sua sonâmbula à descoberta. Ela lhe desenhou um mapa desses
porões e lhe afirmou que em uma delas se encontrava um tesouro lá depositado
desde o fim do século XVII. Nosso homem fez seus preparativos e, numa bela
noite, foi com sua vidente até essas ruínas. Ele encontra a entrada dos
subterrâneos, acende uma lanterna, adentra os corredores, guiado pela sonâmbula
adormecida. Em um dado momento, esta solta uma exclamação de pavor; diante dela
um padre, diz ela, pertencente a uma certa ordem reconhecível pela forma
particular de seu cabelo, lhe faz gestos de ameaça. O magnetizador lhe ordena
que avance assim mesmo; a infeliz dá alguns passos tremendo e, de súbito, cai
com um grande grito: “Ele me matou”. E ela morreu instantaneamente. O que foi o
retorno do nosso mago, nas trevas, a duas léguas da cidade, com um cadáver nos
braços, vocês imaginam. Ele nunca mais tentou descobrir um tesouro.
Na imensa maioria dos óbitos, o espírito se afasta ao fim de alguns
dias. Logo após o último suspiro, com efeito, o julgamento acontece. Tal como
eu lhes dizia ainda há pouco, uma assistência invisível numerosa se comprime em
volta do leito funerário. Dois desses gênios conduzem durante três dias o
espírito do defunto a todos os lugares onde ele viveu e o colocam diante de
todas as criaturas com as quais ele se relacionou e de todas aquelas que ele
teria conhecido se ele tivesse sempre cumprido totalmente o seu dever. Essa
viagem termina diante do tribunal onde tem assento o Juiz, nosso Jesus.
Frequentemente, Ele está só, às vezes estão ao seu lado o Senhor da Terra e a
Virgem Maria. Diante dessas presenças muito puras, mas que encobrem o seu
brilho conforme a fraqueza dos olhos que as contemplam, o espírito desencarnado
percebe suas faltas como em um espelho; ele se confessa espontaneamente; todas
as mentiras vêm à luz e os crimes escondidos são descobertos. Com frequência, o
remorso e o arrependimento são tais que o espírito cobra de si mesmo a
expiação.
Além disso, há um acusador, o anjo mau, e um defensor, o anjo guardião,
e, com ele, a Virgem, que coloca na balança sua poderosa intercessão. Em todo
caso, a sentença é sempre amenizada; a Misericórdia triunfa sobre a Justiça.
É o espírito por inteiro que passa por esse julgamento: o inconsciente e
o consciente, fluidos, mental e psiquismo, uma vez que cada uma dessas
entidades componentes possui livre arbítrio. Dada a sentença, elas retornam
respectivamente à região terrestre de onde saíram.
A memória e a inteligência não seguem o eu; elas permanecem aqui; não se
pode, pois, lembrar de encarnações anteriores, e as paramnésias não vêm nem do
cérebro, nem do intelecto, mas do espírito.
Esse último se dirige ao lugar onde reside o ideal que ele adorou por
seus atos, suas inquietudes e seus desejos. O espírito do pintor vai a um
planeta de luz; o espírito do músico a um planeta de harmonia; o do mentiroso a
um lugar onde tudo é engano. Cada paraíso, cada inferno, que as diversas religiões
descrevem, existe objetivamente. O espírito do velho guerreiro escandinavo
subia até um Walhalla; o espírito do católico fervoroso repousa em uma
atmosfera de doçura, de entusiasmo e de reconhecimento; o espírito do falso
adepto é acorrentado em um espaço imóvel e vazio. Numa palavra, cada um
experimenta a realização de suas mais caras esperanças.
É, portanto, exato que, se nos mostramos bons filhos, bons esposos, bons
pais, bons amigos, reencontraremos do outro lado nossos ancestrais, as pessoas
que amamos, nossos amigos, mesmo aqueles que tínhamos perdido de vista há muito
tempo. Mas, se quisermos evitar desilusões ou surpresas do outro lado, não se
deve esquecer que, em nossas simpatias e nossas antipatias terrestres, as
forças da carne e do sangue contam muito e que, cessando sua influência por
causa da morte, pode acontecer que um ser adorado se torne logo indiferente ou
um inimigo, simpático. Às vezes, também, devo reconhecer, quando nossos
sentimentos são puros, a separação os exalta, os sublima e os conduz até as
imortais claridades do Amor verdadeiro, daquele que a cada sacrifício aumenta o
esplendor.
Tudo se equilibra no cosmos. As mortes e os nascimentos se equilibram;
aquele que desaparece da Terra, seu espírito vai, digamos assim, animar imediatamente
um outro corpo em um outro planeta. Lá tudo está pronto para recebê-lo, pais o
esperam, e amigos, e guias, como no momento em que ele nasceu aqui na Terra.
Enquanto esperamos a ressureição definitiva no Reino de Deus, a morte
nos proporciona uma ressureição imediata. Não precisamos nos inquietar com
nada, nem temer o que quer que seja: todos os detalhes desses deslocamentos
estão previstos e regulados com a mais minuciosa solicitude. A única
preocupação do Pai é a de nos fornecer todos os meios para viver, para aprender
e para trabalhar.
O período de transtornos cessa tão logo a alma se desprende de seus
ídolos terrestres e se resigna. Ela entra então no gozo sereno de seu Ideal. No
entanto, duas categorias de ser não conhecem o repouso do outro lado. São
primeiramente os maus e aqueles que não quiseram trabalhar em si mesmos
enquanto estavam na Terra. Em segundo lugar, são os soldados do Céu. Esses, na
verdade, não trabalham para se aperfeiçoarem nem para ganharem o Céu. Eles
estão seguros de que verão a Deus um dia. Para eles é indiferente tornarem-se
ricos, célebres, poderosos, no físico ou no moral; é a vontade do Pai que lhes
interessa. Eles sofrem somente pelos outros, jamais por eles mesmos; o que eles
buscam é oferecer aos outros verdadeira alegria. Eles esquecem de si mesmos,
não pensam em suas fadigas e, se ganham uma recompensa, não a guardam, dando
seus méritos a seus irmãos menos avançados.
Entretanto, quanto aos homens ordinários, estes repousam, mas não por
muito tempo. É muito raro que o intervalo entre duas encarnações terrestres
atinja mil anos; quanto mais a raça à qual se pertence se aproxima de seu fim;
quanto mais o próprio indivíduo for evoluído, mais frequentemente voltam as
encarnações. Até existe aqui na Terra um homem que não faz outra coisa senão
passar sem interrupção de um corpo usado a um corpo novo; seu espírito nunca
teve o tempo de ir até o país dos mortos. A lenda judia de Elias, a lenda
cristã de João Evangelista, a lenda muçulmana de “El Khadir” provêm de uma
intuição desse fato. Esse homem, verdadeiro Ahasvérus do invisível, é a
sementinha imperceptível que prepara o futuro longínquo quando nosso planeta
entrará na alegria do Senhor.
É sobre esta Terra que se trabalha com mais resultado. Chegar a uma
idade avançada é, pois, um favor. Em nenhum caso tem-se o direito de se dar a
morte; o suicídio é um cálculo muito ruim. O espírito passa do outro lado por
todos os sofrimentos aos quais ele queria escapar e, além disso, é preciso que
ele realize trabalhos suplementares para reparar todas as desordens que seu ato
intempestivo determina em torno dele. No entanto, não culpem os suicidas;
ninguém conhece os verdadeiros motivos de um ato; e, às vezes, o suicídio é,
por assim dizer, fatal.
*
Qual deve ser nossa conduta para com as almas dos mortos? De um modo
geral, não temos que nos ocupar dos mortos; não temos deveres para com eles.
Não nos é proibido pensar neles, continuar a lhes querer bem, lamentá-los; mas
não se deve fazê-los voltar, nem pela magia, nem pelos meios mais simples do
espiritismo. Se nós somos bons, se eles foram bons, eles voltam por si mesmos,
ou melhor, eles não nos deixam.
Em todas as famílias patriarcais, os ancestrais estão presentes em torno
do lar; eles assistem seus descendentes e oram por eles, se eles souberam orar
na Terra. Aliás, ancestrais, pais e filhos são um só grupo compacto. Se eles se
separam segundo o corpo, eles permanecem juntos segundo o espírito, com a
condição de que eles todos pratiquem a virtude. O bem reúne, aproxima,
harmoniza sempre. O mal, mesmo quando é o mesmo gênero de mal que vários seres
cometem, sempre desune e dispersa. As manifestações psíquicas provocadas,
quando elas não são produzidas nem por larvas, nem por espíritos de animais,
são o feito do duplo, do astral do defunto; quase nunca o eu imortal participa
disso. Assim nós estamos na mão de Deus; Ele dispõe de nós à Sua vontade, mas
sempre para o nosso aperfeiçoamento. Ele não permite a ninguém deixar o
trabalho antes da hora; Ele não permite a nenhum deus espoliar quem quer que
seja. O Pai cuida de todos; quando um ser bem-amado nos deixa, simpatias novas
o cercam; ele tem guias, ele tem ajudas; e, aonde seu justo destino o levar, é
para o seu aperfeiçoamento. Lutem, pois, contra a revolta e contra o desespero.
Nossos gemidos prendem nossos mortos à Terra. Deixemo-los partir; eles
voltarão; eles voltam mesmo frequentemente de uma maneira muito material. Pois
se o bisavô sorri com uma ternura tão profunda a seu bisneto, é porque seus
espíritos se reencontram e relembram os anos passados, quando talvez eles tenham
sofrido juntos e foram felizes juntos. Mas respeitemos o véu que a Bondade
divina lançou felizmente sobre o mistério das existências.
O espiritismo, portanto, para aquele que acredita em Deus, é, no mínimo,
inútil. Aliás os espíritos não sabem nada mais do que nós sobre os segredos do
universo; eles podem muito bem nos ouvir espontaneamente em caso de urgência.
Obedeçamos à palavra do Cristo: “Deixem os mortos sepultar os mortos”. Eles têm
anjos que se ocupam deles, lá onde estão, como tinham quando habitavam a Terra.
Quanto ao inferno, nenhum ser permanece lá para sempre. O próprio Príncipe do
inferno chegará um dia ao arrependimento. E se estivermos preocupados em
melhorar a sorte de nossos defuntos, o único procedimento eficaz e normal é o
de se entregar com mais fervor à prática da virtude. Do coração do discípulo a
Luz se irradia sobre todos os seres aos quais ele se assemelha. Nós formamos
famílias, e os membros de cada família permanecem juntos, em espírito, com a
condição de que eles se unam pelo amor do mesmo Mestre. E esse amor, creiam, é
o único que nada macula e sobre o qual podemos fundar as mais firmes
esperanças. Poucos homens o conhecem, mas, a crer nesses privilegiados, nenhum
encantamento se aproxima de suas delícias sobrenaturais.
*
Assim, a morte é doce para aquele que ama a Deus acima de tudo. Ainda
que ele busque longe, nas criptas do esoterismo, elixires e fórmulas para
prolongar sua existência, ele tampouco deseja apressar a visita daquela que só
o Cristo soube vencer. Sua alegria não é morar aqui ou em outra parte, mas
fazer a vontade de seu Mestre. Se vocês soubessem em que beatitude nos lança a
menor palavra, a simples presença do Amigo, todos os desertos perderiam seu
horror, e todos os infernos, sua desolação. Ora, Jesus mora em nosso coração,
de preferência a qualquer outro lugar, a menos se nós nos opusermos à Sua
visita.
Que esplêndidas recompensas serão nossas mais tarde! E com que
suavidades o Céu interrompe os trabalhos de Seus soldados! Por eles, a morte se
despoja de seus terrores, anjos vêm à sua cabeceira, eles os guardam, eles
afastam os seres hostis de seus corpos, eles os envolvem em véus, eles os
cobrem com suas asas, eles os carregam em seus braços, acima dos abismos,
através dos turbilhões, e eles os depositam, adormecidos em um leve sono, sobre
os degraus do trono onde se assenta Aquele que eles amam. Não, em verdade, o
soldado não pode temer nada de tudo o que se agita entre os limites da criação.
Mas eu não gostaria que vocês se pusessem a trabalhar na esperança de uma
recompensa; é rumo à única alegria inefável do Espírito que eu desejo vê-los
caminhar.
Aquele que doma suas paixões e mantém esses corcéis fogosos na trilha do
bem recebe como recompensa tornar-se realmente o senhor delas. Aquele que
venceu demônios, o Céu os dá a ele a seguir como servidores, quando eles
melhoraram por seus cuidados. Mas quando trabalhamos por qualquer vantagem que
seja, estamos no egoísmo e não no Amor.
É preciso se tornar perfeito por simples obediência, para dar alegria ao
Amigo. É então que o Céu nos confia o butim; mas, sobretudo, ele Se torna
sensível em nós. Ele derrama em nós o puro licor da vida eterna. Ele nos
inflama com um ardor sempre crescente. Essas noções místicas não são conceitos
filosóficos; são realidades, substâncias ativas, bálsamos penetrantes. Se o
Verbo é a Vida, e se nós O possuímos dentro de nós, nosso único trabalho é o de
fazer crescer esse germe precioso, cultivar à nossa volta as inumeráveis
centelhas de toda ordem que jorram continuamente do coração do Universo. A
morte nos aparecerá tal como ela é: um fantasma; e somente a eventualidade de
uma diminuição da Luz em nós nos dará esses temores salutares graças aos quais
não paramos de subir rumo aos cimos do Imutável.
NOTAS:
* Tradução de
Anderson Fortes de Almeida.
** Retirado e
traduzido do livro “Les Forces Mystiques et la Conduite de la Vie”,
Paris, “Amitiés Spirituelles”, 1977. Pág 151 até 166.