domingo, 7 de julho de 2024

O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

 

                     O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

                                                               Por Marco Antonio Coutinho (1)


Em 21 de maio de 1969, no interior da Bélgica, um ancião de nome Émile Dantinne aguardava a chegada da morte. Ao seu lado, velando por ele, sua filha Marie-Louise pôde ouvi-lo sussurrar as últimas palavras: "A gente não sabe nada... ".

É possível que aquele velhinho que acabava de falecer não soubesse realmente tudo. Afinal de contas, quem é que sabe? Mas naquele dia, com a morte de Dantinne, desaparecia também um homem que foi considerado um mestre entre os mestres, o Príncipe da Iniciação Ocidental: Sâr Hiéronymus.

Da vida pessoal do mestre pouco se sabia, mesmo na época de sua maior influência, que se estendeu principalmente entre os anos 20 e 50. Durante esse período, a figura enigmática de Sâr Hiéronymus aparecia tão somente por ocasião dos cenáculos e conventos secretos das ordens tradicionais, quando ele fazia valer sua autoridade e conhecimentos, para orientar os dirigentes das mais antigas confrarias de estudantes de mistérios do Ocidente. O Grande Mestre da AMORC para a França na época, Hans Grüter, inquietou-se com tanto mistério, e chegou a comentar numa carta: "Não conhecendo nem o seu nome profano, nem o seu endereço, perguntei ao nosso grande amigo Mallinger como poderia lhe fazer chegar uma palavrinha". Jean Mallinger era Sâr Elgin, braço direito de Hiéronymus, e um dos raros interlocutores do mestre que podia ter acesso à sua vida pessoal. Hiéronymus era secreto por natureza. Se, por um lado, aqueles que participavam de suas atividades iniciáticas nada conheciam sobre sua vida privativa, tampouco os que o conheciam pessoalmente sabiam qualquer coisa de suas atividades tradicionais.

       MESTRE ROSACRUCIANO, MARTINISTA E PITAGORICIANO

Sâr Hiéronymus nasceu em 19 de abril de 1884, em Huy Sur Meuse, na Bélgica. Foi batizado na Igreja Católica Romana, à qual permaneceu fiel até o fim de seus dias. Embora tenha interrompido seus estudos aos dezesseis anos de idade, para sustentar a família, retomou-os mais tarde, na Universidade de Liège, onde tornou-se um especialista em línguas orientais. O ‘nomem mysticum’ "Sâr Hiéronymus", sob o qual ele ficou mais conhecido, era consequência direta de sua posição nos meios esotéricos europeus. Sâr, título reservado a alguns dirigentes ou iniciados de alto grau no mundo da iniciação, é de origem egípcia, e significa Filho do Sol (Sa = filho e R', ou Rá, ou ainda Rê = Sol). Ao lado desse título, os dirigentes que tinham o direito reconhecido de usá-lo apunham um nome sagrado. Assim, por exemplo, Harvey Spencer Lewis ficou conhecido como Sâr Alden, Jeanne Guesdon como Sâr Puritia, e Léon Lelarge como Sâr Agni. Quanto a Dantinne, continuou impessoal até na adoção de seu nome sagrado: Hiéronymus significa simplesmente... "nome sagrado"!

Na vida civil Émile Dantinne era bibliotecário de sua cidadezinha, e funcionário do "Télégraphes et Téléphones". Essas atividades pareciam proporcionar-Ihe tudo aquilo de que necessitava: silêncio, estudo, tranquilidade e anonimato. E foi nesse clima de vida quase monástica que Dantinne empreendeu sua fulgurante jornada iniciática. Desde os primeiros estudos aos pés de seu mestre, Josephin Péladan (Sâr Merodack), até a venerável posição de Imperator da Rose+Croix da Europa, ele percorreu um caminho de muito sacrifício, muito estudo, e organizou dedicadamente as mais importantes ordens esotéricas na Europa. Dentre elas, a Rosa-Cruz, o Martinismo e o Pitagorismo.


As atividades rosacrucianas de Dantinne foram herdadas diretamente de seu mestre Péladan. O discípulo reorganizou a obra empreendida por seu predecessor, através da Ordem Rosa-Cruz Universal, ou Interna, que era composta por três graus: Escudeiro, Cavaleiro e Comendador. Esta nomenclatura se explica facilmente. Ao contrário de algumas ramificações rosacrucianas igualmente importantes - que acentuam mais a via do alquimista - a Rosa-Cruz de Hiéronymus enfatizava a via cavaleiresca. Para ele "a R+C é uma ordem de cavalaria cristã, fiel à tradição do cristianismo, que se considera como a guardiã do Espírito Santo".

Para ingressar na Rosacruz Interna, no entanto, era necessário que os aspirantes passassem pelas provas de uma outra organização, concebida como uma espécie de átrio, de pátio externo, a Ordem Rosacruz Universitária, frequentada principalmente por estudantes, e composta de nove graus: Zelator, Theoreticus, Practicus, Philosophus, Adeptus Minor, Adeptus Major, Adeptus Exemptus, Magister Templi e Magus. Uma vez concluído o grau de Magus, o aspirante poderia postular admissão à Rosacruz Universal, ou Interna, sem ter qualquer certeza de que seria realmente recebido.

Hiéronymus foi também um alto iniciado na tradição pitagoriciana, e despertou na Europa a Ordem Pitagoriciana, a qual ficou também conhecida, na época, como Ordem Hermetista Tetramegista e Mística (O.H.T.M.), ou ainda Ordem de Hermes. A Ordem Pitagoriciana era coordenada pelo Quadrado da Perfeição, formado pelo Sublime Grão-Mestre da Ordem e seus três secretários ou Superiores Incógnitos, e compunha-se de quatro graus. Os três primeiros - Loja Pitagoriciana, Soberano Capítulo Ocultista e Grande Areópago Hermetista - eram presididos, cada um, por um dos Superiores Incógnitos. O quarto e último grau - Sublime Consistório Luminoso - funcionava sob a supervisão direta do próprio Grão-Mestre da Ordem. Tardiamente, Dantinne foi iniciado nos ritos do Martinismo. Primeiramente na Ordem Martinista e Sinárquica, e depois na Ordem Martinista Tradicional (no Brasil, Tradicional Ordem Martinista). Entretanto, até hoje pairam dúvidas sobre uma eventual filiação do mestre à Maçonaria. Alguns historiadores sugerem que Dantinne veria com maus olhos a abolição do conceito do Grande Arquiteto do Universo por determinados grupos maçônicos europeus (particularmente na França), mas que poderia ter-se filiado a um dos ritos de Mênfis-Mizraïm, eminentemente místicos e diretamente ligados à tradição esotérica do Antigo Egito.

                                SACERDOS IN AETERNUM

De todo modo, durante muitos anos, Émile Dantinne animou as atividades tradicionais da velha Europa, e dedicou-se profundamente às suas pesquisas pessoais. Ele era um especialista na Medicina Espagírica, uma forma de arte terapêutica baseada nos princípios da alquimia. Conhecia também em profundidade os princípios do magnetismo psíquico (que deram origem à moderna hipnose) e a arte da radiestesia. Conta-se mesmo que, durante a 2a Guerra Mundial, ele teria colaborado com a Resistência, colocando seus conhecimentos radiestésicos a favor de seu amigo Léon Lelarge (Sâr Agni), membro destacado na luta contra os nazistas, para ajudá-lo nos projetos de sabotagem e destruição ferroviária.


A respeito de suas habilidades psíquicas, seu principal discípulo, Jean Mallinger (Sâr Elgin), conta algumas passagens bastante curiosas. A respeito de uma delas, Mallinger diz: "Ele possuía um dom singular, que seu falecido amigo Léon Lelarge e eu mesmo pudemos verificar com nossos próprios olhos: podia fazer parar rapidamente a chuva e enviar as nuvens para outra região. Sem dúvida, isto parecerá inverossímil para alguns; entretanto, com a melhor boa fé, só posso dizer que vi!"

Mas o maior dos mistérios relativos a Sâr Hiéronymus aconteceu num belo dia de maio de 1933 e deixou sem ação mesmo os seus discípulos e colaboradores mais íntimos. De repente, sem qualquer explicação, ele decide abandonar tudo! Resolve cessar todas as suas atividades esotéricas, sem dizer em nenhum momento o porquê desse estranho gesto. Numa carta a Lelarge, Jean Mallinger dá uma idéia do desespero que tomou conta de todos. "Eu Ihe perguntei francamente a respeito - diz Mallinger. Esta notícia, vinda de um iniciado que é ‘sacerdos in aeternum’ parece-me tão surpreendente, que prefiro acreditar numa prova cruel". A resposta de Hiéronymus é uma só: "Tratai de sondar o insondável que nos dá a mão por sobre o muro".

Não se sabe ao certo o que aconteceu. Se foram os insistentes pedidos dos discípulos, ou o fruto de suas reflexões pessoais, mas o fato é que Hiéronymus voltou atrás em sua decisão. Da mesma forma repentina, e sem qualquer explicação. Na verdade, ele saiu da crise com um estranho e renovado vigor. Dá uma nova dimensão ao esoterismo na Bélgica, intensifica seus contatos com os confrades além das fronteiras de seu país e mesmo do continente, e dá nascimento àquilo que ficaria conhecido como a grande obra de sua vida: a Federação Universal das Ordens e Sociedades Iniciáticas - FUDOSI .

OS PRIMEIROS PASSOS

Na verdade, Hiéronymus já vinha aprofundando, desde alguns anos antes, seus laços de amizade com representantes de outras ordens esotéricas. Dentre esses contatos, destacaram-se especialmente os mantidos com Harvey Spencer Lewis - Imperator de um ramo rosacruciano das Américas, a AMORC - e com François Jollivet Castelot, homem de profunda visão social e presidente da Sociedade Alquímica de França. Desses contatos surge, então, uma estreita ligação e, logo, uma franca colaboração, que serão as bases apropriadas para a formação da FUDOSI. Num gesto de reconhecimento, Hiéronymus oferece a Lewis um diploma de honra da Faculdade Livre de Filosofia Iniciática, sob os auspícios da Ordem Soberana da Rosa+Cruz Ocultista e Dourada, e da R+C Universitária da Bélgica, onde atesta os conhecimentos do Imperator R+C das Américas no Hermetismo Egípcio, na Ciência Oculta e Cabalística, e na Magia Ritual, manifestados no interesse da humanidade. A seguir, inicia Spencer Lewís no 13° Grau R+C, e dá os primeiros passos, abrindo as atividades do Convento Internacional das Ordens e Fraternidades Iniciáticas, do qual participam apenas as ordens rosacrucianas. Pouco depois, faz abrir o Convento do Supremo Conselho Internacional da Ordem Maçônica de Mênfis-Mizraïm. Paralelamente, acontece uma assembléia martinista, durante a qual Hiéronymus e Lewis, juntos, são recebidos na Ordem Martinista e Sinárquica. Todas essas preliminares dão nascimento à FUDOSI, que trabalha sob a coordenação de um conselho supremo especialmente eleito e composto de três imperatores: Sâr Hiéronymus (Émile Dantinne, Imperator da Europa), Sâr Alden (Harvey Spencer Lewis, Imperator das Américas) e Sâr Yésir (Victor Blanchard, Imperator para o Oriente e para as ordens afiliadas).

VOLTANDO AO SILÊNCIO

A FUDOSI realizou o seu trabalho durante dezessete anos, e foi particularmente maltratada durante a 2a Guerra Mundial, com a perda de alguns de seus oficiais, mortos em combate, nos campos de concentração, ou pela Gestapo, sob tortura. Mas para Dantinne, o final da Guerra foi especialmente árido. Por um mal-entendido, e sob o calor e o entusiasmo da libertação, ele foi injustamente acusado de colaborar com os nazistas. Os mais afoitos cortaram rente e à força a sua bem cuidada barba, e Dantinne não reagiu. Chocado com a acusação, ele apenas chorava copiosamente, sem conseguir falar. Foi a julgamento e seu advogado, Jean Mallinger (Sâr Elgin), provou diante de todos que Dantinne não apenas estava acima de tão sórdida acusação, como havia participado ativamente da Resistência. Ele aceitou silenciosamente os pedidos oficiais de perdão por parte do governo belga, mas nunca mais quis retomar o cargo de bibliotecário de Huy Sur Meuse, do qual fora suspenso durante o processo e que tentaram lhe devolver rapidamente, depois de sua absolvição.

Com a dissolução da FUDOSI, no início dos anos 1950, Hiéronymus desapareceu novamente no silêncio e no anonimato que ele tanto amava. Ao que se diz, viveu seus últimos dias estudando e meditando em Huy Sur Meuse, talvez ao lado de sua filha Marie-Louise e alguns poucos discípulos, não na solidão, mas na ‘solitude’ que parecia ser a sua vocação. Certamente viu com satisfação os resultados de seu trabalho florescerem nos anos que se seguiram, seus ideais de transformação social pela cultura e pelas artes tradicionais. E foi talvez assim satisfeito que, no dia 21 de maio de 1969, com a idade de 85 anos, Émile Dantinne, Sâr Hiéronymus, tratou de “sondar o insondável que nos dá a mão por sobre o muro”.



Retirado da Revista “L´Initiation”, N. 6 – Julho/Setembro de 2002, versão brasileira da Gnosis Editora, RJ.

sábado, 9 de setembro de 2023

ARTE E ETERNIDADE EM JOSEPHIN PÉLADAN

  

ARTE E ETERNIDADE EM JOSEPHIN PÉLADAN*

 Que o espiritualismo seja verdadeiro ou falso, que a alma seja imortal ou não, que a religião seja a expressão da verdade ou somente um sonho, a arte vive de espiritualidade: e as aspirações de eternidade serão sempre as únicas musas.

                                        

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O Sr. Curie não tem nenhuma necessidade de teologia para constatar o fenômeno de radiação que justifica a doutrina espiritualista e, ao provar a unidade da matéria, traz uma surpreendente confirmação da unidade de Deus. Diante de seus aparelhos, ele pode ser materialista, sem que isso prejudique suas descobertas.

O artista, ao contrário, condena-se à esterilidade ao aplicar à sua busca uma fórmula de laboratório. O que ele constata não significa nada: os elementos que lhe fornece a natureza devem atravessar estados sucessivos para se cristalizarem em beleza; o alambique aqui é seu próprio cérebro. Como o modelo, análogo ao carbono, vai-se sublimar em diamante? A que temperaturas de alma será preciso submeter o sombrio mineral para conduzi-lo ao estado luminoso e radiante? Segredo verdadeiramente impenetrável, segredo quase divino essa transformação da forma atual em forma imortal!

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Esteticamente, não há sucessão. Após o gênio vem a mediocridade e, para dizer a verdade, não há escolas, há homens mais ou menos divinos e outros homens aplicados que os seguem.

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A arte da França morre porque ninguém ama a beleza como São Francisco amou a pobreza; perdidamente.

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A história da arte é a história de alguns indivíduos.

Entre eles, colocam-se cinquenta nomes que não valem senão como diminutivos do seu nome! Esses cinquenta servem de escala para medir os gigantes, dos quais, sem eles, não conheceríamos a verdadeira estatura. Natura non facit saltus. Antes e depois do gênio, não se prosterna, mas ainda se admira.

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O privilégio do homem é penetrar pelo pensamento até às essências que o olho interno descobre sozinho, e até à fonte de todas as essências, o Ser infinito ou o Belo absoluto. Manifestá-lo nas formas dele emanadas e que o refletem, tal é o objeto da arte, seu objetivo magnífico.

Lamennais diz acertadamente. A obra de arte digna desse nome tende a encontrar a substância ou forma expressiva da essência. A arte opera por encarnação.

Quando o venerável Ingres nos mostra Joana d’Arc armada exatamente conforme a moda das armas em 17 de julho de 1429, ele não faz nada de bom nem de mau. A essência de seu tema é outra. Qual é a forma essencial de uma donzela inspirada, que, depois de levar seu país à vitória em nome de Jesus rei do céu, será queimada aos dezenove anos?

Estandarte, espada, armaduras, acessórios sem interesse. Joana d’Arc é uma ideia: qual é o corpo dessa ideia, a face dessa ideia? Ela é uma jovem e faz ato de homem; ela é do sexo de seu ato? Não. É somente uma donzela? Também não. Será São Jorge? Tampouco. Um anjo? Não.

Não posso enumerar a sucessão de imagens pelas quais o artista chegará a conceber a boa Lorena; mas afirmo que se trata de desenhar um rosto, depois um corpo, de encontrar enfim um gesto e que o problema é puramente expressivo e plástico.

O Moisés de Miguel Ângelo desorienta nossas noções preconcebidas. Ninguém explicará satisfatoriamente essa obra, tão bizarra em sua roupagem, e, no entanto, ninguém hesitará em reconhecer o personagem.

Os ortodoxos não gostam do Moisés, acham revoltantes os nus da capela dos Médicis e os denominam “o caos e a matéria, o orgulho e a volúpia que a Renascença parece ter querido glorificar”.

Já indiquei o quanto a sacristia calunia o ardente espiritualismo da Renascença.

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O personagem da arte difere do personagem vivo como o ator em cena difere do homem privado. A moldura ou o pedestal separa este mundo do mundo da ficção, como uma rampa.

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O que constitui a beleza de uma estátua é exatamente o que separa a obra do modelo; e essa distância se dá primeiramente entre o homem geral ou serial e o indivíduo; em seguida entre o homem serial e o personagem representado; enfim, entre o personagem e a ideia maior que ele simboliza. Suponhamos que se trate de uma estátua de Prometeu, sua forma será bela, animalmente; além disso, ela será um pouco colossal, já que ele é um demônio entre o efêmero e o olímpico; enfim, será preciso que ela responda à audácia que roubou o fogo, à caridade que o deu, e sobretudo à vontade que o suplício do Cáucaso não pôde esgotar.

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O diagnóstico médico não traz nenhum esclarecimento para o crítico. Miguel Ângelo era muito bilioso, grande descoberta! Torregiani lhe esmagou o nariz, e o que isso contribui para explicar o teto da Capela Sistina?

O gênio trabalha apesar da doença e não por causa dela. Bazzi (1) mereceu seu cognome? O que isso importa para O êxtase de Santa Catarina e para O casamento de Alexandre e Roxana?

Aqueles que viveram na intimidade dos homens de gênio conhecem suas manias, seus tiques, e sabem que isso são acidentes, sem relação com suas obras.

A faculdade criadora, desde que ela exista, domina o ser inteiramente; ela mantém aqueles que a possuem em estado de perpétua gestação.

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A ciência oferece verdadeiramente uma sequência adicional que coloca o que veio por último na posse de todo o adquirido pelos que lhe precederam: o mais fraco naturalista assimila as descobertas de Lavoisier e de Bertholet e, a não ser em seus métodos, a ciência não parece poder retroagir.

A arte, ao contrário, se encarna, vive e morre em cada gênio. Giotto é toda uma arte, e Rafael, por mais perfeito que seja, não possui as qualidades do trecentista.

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A beleza é única em seus caracteres essenciais. A mesma busca leva ao mesmo resultado.

As obras-primas têm entre si um ar de família e esse ar constitui a quintessência da arte. Com a gama musical, Palestrina tudo exprimiu, assim como Wagner. Com a forma humana, desde a Esfinge colocada no limiar do deserto até o São João, desde a deusa de Tebas até a Madona, tudo foi dito.

O Cristus Judex de Miguel Ângelo com a barba seria o Zeus tonitruante, como os personagens da Disputa do Santo-Sacramento poderiam se tornar gregos e os da Escola de Atenas cristãos. O São João a meio corpo não seria uma esfinge com braços?

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Peço perdão à Universidade atual, a qualidade que faz uma obra-prima de um pote, materialmente semelhante a um outro, essa inflexão de linha, essa inefável modulação do contorno que nenhuma regra exprime e que em suma não existe senão pelo divino acaso da inspiração é imaterial como a alma que a percebe.

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Nem as particularidades locais e momentâneas da civilização, nem os traços animais e coletivos da humanidade possibilitam a beleza. Para compreender uma obra esteticamente, é preciso esquecer a vida do artista e da época. Se Leonardo tivesse querido nos informar sobre Louis Le More (2), e Rafael sobre Leão X, eles teriam pintado diferentemente.

Esses mestres não eram cronistas e não se propunham de forma alguma a fornecer documentos aos historiadores; eles viam um mundo ideal que nunca existiu senão em seus espíritos e pintaram suas visões. O artista pertence a seu tempo tão somente pela natureza de suas visões, que participam, não do pensamento geral, mas dessa minoria intelectual que é sempre a elite. Rafael fez sua obra-prima com a Escola de Atenas, porque o humanismo foi o verdadeiro misticismo da Renascença.

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A Beleza opera por meio da volúpia. Uma obra-prima aumenta em nós a vida da graça, espelho magnífico que ilumina e dilata nossa personalidade. Primeiramente, a Beleza nos dissuade de toda vulgaridade, ela nos inculca a ideia de perfeição e harmonia. A Beleza é o mistério para os olhos, ela é o verdadeiro tornado sensível, ela é o bem visível, ela é o rosto de Deus.

Nós vivemos intelectualmente de mistério como Fausto, nós vivemos animicamente de aspirações à felicidade e à justiça como Prometeu; e a arte, criada pela religião, torna-se a nova religião para os homens que cessam de crer sem cessar de ser homens e de sentir.

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* * Textos selecionados e traduzidos de L’esthétique idéaliste, in: PÉLADAN, Joséphin. “Les deux esthétiques – Théorie de la beauté”. Casimiro livres, 2022. Tradução: Anderson Fortes de Almeida.


Notas do tradutor:

1) trata-se do pintor italiano Giovanni Antonio Bazzi (1477 – 1549), cognominado Il Sodoma (O Sodoma) segundo Giorgio Vasari em sua obra As Vidas dos Melhores Pintores, Escultores e Arquitetos, publicada em 1568.

2) Ludovico Maria Sforza (1452 – 1508), cognominado Il Moro (O Mouro), regente do ducado de Milão e mecenas de Leonardo da Vinci, a quem encomendou o afresco conhecido como A Santa Ceia ou A Ceia do Senhor (em italiano: L’Ultima Cena) para o convento dominicano de Santa Maria delle Grazie.

 

 

domingo, 25 de junho de 2023

AS BÊNÇÃOS DA MORTE

 

AS BÊNÇÃOS DA MORTE*

                                            Por Paul Sedir**

                                                                  “LÁZARO, NOSSO AMIGO, DORME, MAS VOU DESPERTÁ-LO.”

                                                                                     (João, 11: 11)

Se somos, de fato, espiritualistas, se conformamos nossos atos a nossas crenças, a Rainha dos assombros perde a nossos olhos seu prestígio de pavor e seu halo de mistério. Ela se torna a libertação, o passo à frente, a entrada em um mundo novo. Vemos então chegar a ceifadora com toda serenidade; acolhemos com um sorriso sua visita inevitável; pois é de Deus que ela obtém seu poder, e sua força é uma das formas da força do Verbo. O medo que os homens sentem à sua aproximação, se nenhuma embriaguez os subtrai a si próprios, é completamente físico e tem sua origem na inércia da matéria. Os velhos sofrem mais desse medo do que os jovens porque os espíritos corporais, habituados a este mundo, a esta luz, a esta atmosfera, aos objetos familiares, temem perder toda essa vizinhança que lhes é habitual, apreendem o desconhecido que pressentem e se agarram desesperadamente a essa obscura casca que é sua casa. Mas o Eu conserva, em geral, mais calma, e as últimas contrações, que impressionam dolorosamente os espectadores da agonia, não são, na sua maior parte, senão automatismos totalmente físicos.

Os fenômenos da morte são, por assim dizer, desconhecidos. Uma tal afirmação parecerá, sem dúvida, excessiva a pesquisadores como vocês, senhores, que têm familiaridade com os ensinamentos das religiões e com os mistérios das iniciações. Eis o que quero dizer. O lugar onde se efetua a partida das almas é oculto; o ar do país dos mortos é malsão aos vivos. Certos pesquisadores obstinados bem que puderam dele se aproximar e perceber alguma coisa através de uma fenda no muro enquanto os guardiões estavam de costas; mas o que eles viram é incompleto; eles apreenderam somente alguns detalhes isolados, uma silhueta em meio à multidão, uma sílaba entre mil palavras. Apesar disso, o pequeno informe parcial, incompleto, lhes bastou para construir um desses sistemas admiráveis de onde tantos povos extraíram a coragem de morrer, o heroísmo mais difícil de viver, e que nós estudamos ainda hoje com um espanto respeitoso.

Não quero incitá-los ao desdém com respeito a esses velhos rishis, esses patriarcas, esses hierofantes cujo grande labor impõe a consideração; entendam somente que a descrição exata e completa da morte não está escrita em lugar algum. Dizem que as provas dos mistérios antigos consistiam na passagem consciente do neófito através das Portas tenebrosas; sim, o iniciado conhece a morte como se conhece uma cidade à visão de uma fotografia. Somente pode falar sobre o que se passa no reino das sombras aquele que entrou pela porta; e somente entra com legitimidade aquele que recebeu a chave da vida; esse é o homem livre. Vocês só escutarão, portanto, esta noite, noções totalmente elementares, embora eu creia que elas sejam exatas. Não lhes peço, aliás, para aceitá-las sem controle, muito pelo contrário; e isso é possível, já que tudo é verificável a quem peça ao Cristo que lhe instrua diretamente.

     

                                           *

Há diferentes espécies de morte já que são incontáveis as formas da vida e já que estas se sucedem, se substituem e se transformam todas mutuamente. Quanto aos homens, pode-se distinguir as mortes interiores, espirituais, psíquicas, e as mortes exteriores, fisiológicas. As “noites” do misticismo católico são mortes; uma iniciação, um batismo comportam uma morte prévia, pois são renascimentos. Mas quanto à morte corporal, ela consiste unicamente na partida do espírito.

Assim, certos indivíduos vão e vêm, exercem sua profissão, em uma palavra, parecem viver, mas seu espírito já deixou o corpo há muito tempo; é a vida inteligente da matéria que continua a fazer a máquina funcionar. E quando chegar a morte física, quando o espírito corporal, por sua vez, se for, somente seus pais e seus amigos serão afetados, seu Eu dificilmente se dará conta.

Existem outros casos menos extraordinários nos quais o espírito de um homem vivo é em parte exteriorizado no invisível à procura de um ser que ele quer encontrar. Esse deslocamento, que pode produzir-se anos antes da morte, não tem outros efeitos senão uma fraqueza física e mental mais aparente do que no caso precedente, pois o sistema nervoso vegetativo não pode retomar sua autonomia enquanto o espírito só se afastar parcialmente. De fato, é sobretudo o espírito que causa fadiga nos invólucros, físicos e outros, dos quais ele se serve para agir. Vê-se frequentemente um grande vigor corporal nos seres fracos de inteligência ou privados de razão.

           

Quando a hora da partida se aproxima, o anjo da morte – Azraël, o denominavam os Kabalistas, Yama, dizem os brâmanes – desce até o quarto fúnebre. Para dizer a verdade, ele próprio não vem; o taciturno mensageiro só aparece aos raros homens suficientemente intrépidos para afrontar o brilho de diamante de seus olhos que nunca se fecham, aos seres cujas movimentações revolucionam o mundo, aos desconhecidos misteriosos cujo olhar pousou sobre as magnificências mal entrevistas da eterna Luz. Em geral, é um gênio subalterno que se dirige à cabeceira do moribundo. A seguir, dois outros espíritos se apresentam que apontam o bem e o mal que ele fez em pensamentos, palavras e atos; enfim chegam todas as criaturas para com as quais esse homem foi bom ou mau; todas estão lá, desde o seixo até o deus, as folhas da relva, os animais, os humanos vivos e mortos, os invisíveis, todos prontos a testemunhar ou a clamar por justiça.





É por isso que a agonia dos maus é tão penosa. O espírito se sobressalta, sobretudo em suas regiões corporais; ele corre desesperado por todos os cantos do corpo buscando ajuda; e, infelizmente, o amor daqueles que ficaram é por demais pessoal e utilitário, em muitos casos, para lhe oferecer o consolo de que ele tem necessidade. O moribundo só pode ser ajudado por uma força mais calma e mais alta; ele a encontra, geralmente, nos auxílios prestados pela religião.

Um dos efeitos notáveis das cerimônias religiosas é justamente o de lançar uma ponte entre um determinado canto do visível e um determinado círculo do invisível. Todas as religiões prescrevem ritos funerários; e se tivéssemos o tempo de analisar esses numerosos códigos, juntaríamos muito rapidamente uma pilha de documentos muito curiosos. Mas como separar o verdadeiro do falso?

       

Ao invés de estudar os usos de povos diferentes de nós pela época, pela distância, pela mentalidade e pela natureza de sua evolução, habituados a esforços que a dissemelhança dos meios invisíveis nos tornaria impossíveis, olhemos o que está ao nosso alcance, o que está combinado para nós, para nosso país, para nossos tempos e para os homens de nossa raça. Gostaria de lembrá-los dos ritos do sacramento católico da Extrema-unção, de tentar extrair deles o sentido e perceber seus efeitos sobre o pobre espírito desorientado, rejeitado pela prisão deste corpo  à qual ele acabara por se habituar tão comodamente.

                                           *

 Ao entrar, o padre invoca primeiramente a paz sobre a casa e sobre seus habitantes; depois ele dá o crucifixo ao doente para ele o beijar e recita sobre ele a fórmula conhecida de mundificação: “Asperges me, Domine etc.” Se for possível, ele o confessa, e lhe dirige algumas palavras de exortação. O versículo iniciático: “O Senhor esteja convosco e com o vosso espírito” abre uma longa súplica a Jesus-Cristo para a felicidade, a alegria, a saúde, a ajuda dos anjos, o afastamento dos demônios e a santificação. A seguir, uma outra fórmula pede ao Pai o envio de anjos protetores. Recita-se então os sete salmos da penitência, cujo nome indica suficientemente o uso, e as litanias correspondentes. Aqui o padre, por meio de três sinais da cruz, e impondo as mãos, expulsa as forças diabólicas do doente em nome da Trindade e com a ajuda dos santos. Ele mergulha o polegar no óleo santo e unge em cruz os olhos, as orelhas, o nariz, a boca, as mãos, os pés, os rins, invocando sobre a função de cada uma dessas partes do corpo a misericórdia do Senhor. Seguem o Pater, seis responsórios para o socorro divino, e três Oremus, que pedem a saúde interior e exterior.


Na agonia, se o moribundo não puder falar, o padre se coloca no lugar dele e ora em voz alta em seu nome. Essas preces compreendem, entre outras fórmulas, litanias especiais que invocam o socorro do Cristo pelas circunstâncias análogas de Sua vida: Sua paixão, Sua morte, Seu sepultamento, Sua ressureição, Sua ascensão. Depois uma espécie de comando é dada à alma do paciente em nome das pessoas divinas, dos anjos e dos santos para partir deste mundo rumo a um lugar de Paz, um pedido à clemência do Pai, quatro outras orações reiteram esse pedido com apoio nos fatos análogos da história santa e da história da Igreja; depois recitam-se os capítulos XVII e XVIII de João; enfim salmos e três outras objurgações ao Cristo pelos méritos de Sua agonia.

Assim que a morte se aproxima, o padre invoca, em voz alta, próximo à orelha do moribundo, Jesus e Maria, implorando-lhes para receber este espírito, dar-lhe o repouso e ser misericordiosos para com ele.

Vejam, a administração do último sacramento comporta três fases. Uma preparatória, na qual se purifica o lugar e o indivíduo; uma segunda, evocatória, se ouso dizer, na qual o padre evoca Jesus, os anjos e os santos; a ponte é lançada do alto até aqui embaixo. Em terceiro lugar vem o sacramento propriamente dito, que consiste em uma magnetização superior. Enfim, o padre se volta para Deus, recapitula seus pedidos e  faz deles como que um feixe, depois ele eleva seus agradecimentos, seu reconhecimento e sua confiança.

Um homem tem necessidade de uma certa força: é o doente; um outro homem possui a chave desse tesouro: é o padre. O primeiro permanece passivo; o que ele faz nada mais é do que se colocar, pela confissão e pelo arrependimento, em uma atitude moral de receptividade. O segundo o ajuda a tomar essa atitude e lança um fio de transmissão da força solicitada: é a prece; ele o prende no lugar mesmo onde ela nasce, isto é, Jesus; ele conta com a ajuda, para estendê-lo, de intermediários benévolos, os anjos e os santos; ele o fixa no polo negativo, o doente; a força passa e o operador faz com que ela seja absorvida pelo paciente. Depois, ele agradece os auxílios, e os devolve e os reenvia ordenadamente, ou seja, entre as mãos de Deus.

O procedimento pelo qual a Igreja assiste os agonizantes se resume nisto: um homem treinado a viver em espírito, pela contemplação, seguindo o caminho invisível de Jesus ­- o padre -, tenta por meio da prece elevar o espírito do doente que se debate e manter seu espírito desamparado neste mesmo caminho. Para isso ele utiliza a imagem luminosa e viva que cada um dos atos de Jesus deixou na atmosfera segunda; ele aplica o sofrimento corporal do Salvador ao sofrimento corporal do doente, a inquietude de Jesus à inquietude do doente, o poder psicúrgico de um certo antigo profeta ao desespero do doente; ele evoca os triunfos de Jesus: ressureição, ascensão, para tentar fazer o moribundo sentir algum conforto com sua presença invisível.

Assim, a Igreja reconhece uma teoria muito antiga de um meio plástico e vibrante onde se conservariam as imagens de todos os acontecimentos passados. Com efeito, na medida em que um protagonista de um ato qualquer encarna a Verdade nesse ato, a Vida desce para animá-lo, torna sua existência física fecunda e perpetua seu reflexo nessa “imaginação” da terra onde os videntes podem reencontrá-lo séculos mais tarde. Quando o realizador desse ato é perfeito e poderoso como Jesus, os reflexos se multiplicam e possuem uma energia particular, de modo que os homens que tendem para este modelo reencontram mais rapidamente essas imagens e delas se beneficiam mais profundamente.

Tal é, em linhas gerais, o arcano da virtude dos sacramentos. Eles atuam proporcionalmente à profundidade com a qual o fiel e o padre entram no lado oculto do ato crístico que é a sua raiz. A forma sacramental contém sempre duas forças: uma central, proveniente de Jesus, totalmente espiritual, mas assimilável conforme a fé prática do sacerdote e do recipiendário; uma exterior, fluidica, que não é senão a soma das vibrações acumuladas por todos aqueles que fizeram os mesmo gestos e pronunciaram as mesmas palavras. Para que a primeira dessas virtudes penetre a substância da alma e cure até mesmo o corpo, é preciso a santidade do pontífice, o humilde desejo ardente do devoto.

Mas voltemos ao nosso assunto.

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Para compreender o que se passa na morte, lembremo-nos de que no homem certas forças vêm da terra, outras vêm do cosmos, outras enfim vêm de Deus diretamente. A morte é tão-somente uma retomada, pela alma da terra, daquilo que ela nos emprestara no nascimento. Se o restituímos de bom grado, não sofremos. Se recusamos, haverá dilaceramentos inevitáveis, danos e lamentações até que o defunto compreenda a sabedoria de uma resignação confiante. As pessoas boas sofrem muito pouco; aqueles que, ao contrário, fizeram ídolos de si mesmos e de suas qualidades experimentam o vazio de suas glórias. O corpo, o duplo, os sentimentos, as funções mentais, a memória, a habilidade profissional, os gostos particulares, tudo isso é retomado pelos deuses terrestres para uma purificação, uma reparação, e para ser colocado em reserva em um lugar especial para que possa servir mais tarde, seja àquele que já o recebera em depósito, seja a alguém da mesma família espiritual. No que concerne ao corpo físico, a inumação é preferível à cremação. Eis por que: cada individualidade humana, uma vez que ela deve reger um dia uma parte da Natureza, recebe, entre outros trabalhos, uma porção determinada de matéria terrestre a evoluir, fazendo-lhe conhecer pela experiência o modo humano da vida. Um átomo de carbono, por exemplo, trabalha como mineral, depois como vegetal, depois como animal, segundo as diferentes qualidades da vida terrestre em cada um desses três reinos. Ele terminará o seu ciclo entrando em uma individualidade humana, seja pela alimentação, pela respiração ou qualquer outra porta funcional, seja por outras vias hiperfísicas.

Todo um sistema de canais e de fios é estabelecido para trazer a cada um de nós, de todos os cantos do mundo, as partículas materiais que nos são destinadas. Assim, quando entro na padaria, o padeiro me dá, dentre todos os seus pães, aquele mesmo cuja matéria primeira foi escolhida para mim dentre todos os campos de trigo e dentre todas as espigas. O mesmo acontece com tudo o que se incorpora na minha individualidade.

Ao nascer, cada homem recebe uma parte da massa total de substância terrestre que lhe é atribuída desde a origem e que deve retornar à terra, afinada pelo trabalho próprio da vitalidade humana. O quadrado de solo que receberá o cadáver é fixado, também ele, antes que se nasça. Os motivos que determinam o lugar da morte, o cemitério e a localização da tumba são apenas aparências. É assim que se vê imigrantes, que passaram toda sua existência longe, voltarem ao país natal somente para que seu corpo repouse lá onde o solicitam as repartições ocultas da matéria.

Ademais, cada homem está conectado magneticamente a minerais, plantas e animais. Eles nascem juntos e eles morrem juntos; não se deve dispersar o que Deus reuniu. Se, portanto, se queima o cadáver, além do fato de que a liberação dos elementos psíquicos é brutal e faz com que o duplo sofra e entre em pânico, uma quantidade enorme de partículas espirituais recebe uma morte violenta, e aquelas do solo, onde deveria ocorrer a inumação, esperam em vão o trabalho que esperavam e se veem privadas de uma evolução legítima e de uma recompensa: a luz própria da vitalidade humana que as células do cadáver deveriam lhes comunicar. Há dolo, entrave à atividade natural e desconforto em um pequeno canto do plano físico.

O embalsamamento deveria também ser evitado por motivos contrários. Ele retarda a evolução, ele imobiliza o duplo; ele impede o jogo normal do retorno das almas. Se o meu tempo não fosse contado, eu teria anedotas bem curiosas a contar sobre múmias egípcias.


  Certas providências poderiam ser tomadas quanto à inumação propriamente dita, à fabricação do caixão, à construção do sepulcro. Mas tudo está previsto por regulamentações administrativas; e, como não há leis injustas senão na aparência, nosso primeiro dever é o de nos submeter, ainda que tenhamos que sofrer um pouco.


É bom fechar os olhos do defunto: isso o separa do mundo; talvez, no momento de dar o último suspiro, ele tenha entrevisto algum espetáculo que nenhum indiscreto deve surpreender no fundo de suas pupilas doravante imóveis.

Os gênios de que falamos acompanham o cortejo fúnebre; outros seres também, predadores invisíveis e defensores; frequentemente esses últimos são cães, foi isso o que entreviram os bárbaros, que degolavam sobre o túmulo do chefe seus animais de estimação; foi isso o que viram perfeitamente os sacerdotes do Egito e da Índia. Mais do que se pensa, o cão é o amigo do homem.

O duplo flutua em torno do caixão e busca avidamente as emanações fluídicas dos incensamentos, das aspersões, dos gestos sacerdotais e das palavras rituais. É sempre útil mandar celebrar um serviço religioso, pelo menos dizer sobre o corpo alguma prece. O ritual católico do funeral é extremamente instrutivo para ser estudado.

Feita a inumação, o duplo permanece junto ao túmulo e o vigia, a menos que um poderoso interesse o chame a uma outra parte. É assim que os fantasmas das vítimas assombram os lugares em que elas perderam a vida, que o avarento guarda seu tesouro, e o inventor, às vezes, suas fórmulas. Mas tais manifestações, sobretudo quando elas apresentam um caráter de horror ou de desordem, provêm principalmente de seres que não fizeram o bem, que acreditaram somente na matéria, ou que não aprenderam a resignação. E suas inquietudes no Além começam sua purificação. E por pouco que vocês tenham percorrido coletâneas de fatos psíquicos, vocês sabem que esses fenômenos são frequentes. Eu poderia lhes contar um grande número dos quais fui testemunha; vou citar para vocês apenas um, que lhes mostrará como o duplo permanece algumas vezes séculos preso à matéria.

Trata-se de um buscador de tesouros que conheci antigamente e que morava em La Plata. Ele operava por meio da magia e com a ajuda de uma sonâmbula. Ele soube da existência de subterrâneos debaixo de um estabelecimento religioso abandonado e enviou sua sonâmbula à descoberta. Ela lhe desenhou um mapa desses porões e lhe afirmou que em uma delas se encontrava um tesouro lá depositado desde o fim do século XVII. Nosso homem fez seus preparativos e, numa bela noite, foi com sua vidente até essas ruínas. Ele encontra a entrada dos subterrâneos, acende uma lanterna, adentra os corredores, guiado pela sonâmbula adormecida. Em um dado momento, esta solta uma exclamação de pavor; diante dela um padre, diz ela, pertencente a uma certa ordem reconhecível pela forma particular de seu cabelo, lhe faz gestos de ameaça. O magnetizador lhe ordena que avance assim mesmo; a infeliz dá alguns passos tremendo e, de súbito, cai com um grande grito: “Ele me matou”. E ela morreu instantaneamente. O que foi o retorno do nosso mago, nas trevas, a duas léguas da cidade, com um cadáver nos braços, vocês imaginam. Ele nunca mais tentou descobrir um tesouro.

Na imensa maioria dos óbitos, o espírito se afasta ao fim de alguns dias. Logo após o último suspiro, com efeito, o julgamento acontece. Tal como eu lhes dizia ainda há pouco, uma assistência invisível numerosa se comprime em volta do leito funerário. Dois desses gênios conduzem durante três dias o espírito do defunto a todos os lugares onde ele viveu e o colocam diante de todas as criaturas com as quais ele se relacionou e de todas aquelas que ele teria conhecido se ele tivesse sempre cumprido totalmente o seu dever. Essa viagem termina diante do tribunal onde tem assento o Juiz, nosso Jesus. Frequentemente, Ele está só, às vezes estão ao seu lado o Senhor da Terra e a Virgem Maria. Diante dessas presenças muito puras, mas que encobrem o seu brilho conforme a fraqueza dos olhos que as contemplam, o espírito desencarnado percebe suas faltas como em um espelho; ele se confessa espontaneamente; todas as mentiras vêm à luz e os crimes escondidos são descobertos. Com frequência, o remorso e o arrependimento são tais que o espírito cobra de si mesmo a expiação.

Além disso, há um acusador, o anjo mau, e um defensor, o anjo guardião, e, com ele, a Virgem, que coloca na balança sua poderosa intercessão. Em todo caso, a sentença é sempre amenizada; a Misericórdia triunfa sobre a Justiça.

É o espírito por inteiro que passa por esse julgamento: o inconsciente e o consciente, fluidos, mental e psiquismo, uma vez que cada uma dessas entidades componentes possui livre arbítrio. Dada a sentença, elas retornam respectivamente à região terrestre de onde saíram.

A memória e a inteligência não seguem o eu; elas permanecem aqui; não se pode, pois, lembrar de encarnações anteriores, e as paramnésias não vêm nem do cérebro, nem do intelecto, mas do espírito.

Esse último se dirige ao lugar onde reside o ideal que ele adorou por seus atos, suas inquietudes e seus desejos. O espírito do pintor vai a um planeta de luz; o espírito do músico a um planeta de harmonia; o do mentiroso a um lugar onde tudo é engano. Cada paraíso, cada inferno, que as diversas religiões descrevem, existe objetivamente. O espírito do velho guerreiro escandinavo subia até um Walhalla; o espírito do católico fervoroso repousa em uma atmosfera de doçura, de entusiasmo e de reconhecimento; o espírito do falso adepto é acorrentado em um espaço imóvel e vazio. Numa palavra, cada um experimenta a realização de suas mais caras esperanças.  

              

É, portanto, exato que, se nos mostramos bons filhos, bons esposos, bons pais, bons amigos, reencontraremos do outro lado nossos ancestrais, as pessoas que amamos, nossos amigos, mesmo aqueles que tínhamos perdido de vista há muito tempo. Mas, se quisermos evitar desilusões ou surpresas do outro lado, não se deve esquecer que, em nossas simpatias e nossas antipatias terrestres, as forças da carne e do sangue contam muito e que, cessando sua influência por causa da morte, pode acontecer que um ser adorado se torne logo indiferente ou um inimigo, simpático. Às vezes, também, devo reconhecer, quando nossos sentimentos são puros, a separação os exalta, os sublima e os conduz até as imortais claridades do Amor verdadeiro, daquele que a cada sacrifício aumenta o esplendor.

Tudo se equilibra no cosmos. As mortes e os nascimentos se equilibram; aquele que desaparece da Terra, seu espírito vai, digamos assim, animar imediatamente um outro corpo em um outro planeta. Lá tudo está pronto para recebê-lo, pais o esperam, e amigos, e guias, como no momento em que ele nasceu aqui na Terra.

Enquanto esperamos a ressureição definitiva no Reino de Deus, a morte nos proporciona uma ressureição imediata. Não precisamos nos inquietar com nada, nem temer o que quer que seja: todos os detalhes desses deslocamentos estão previstos e regulados com a mais minuciosa solicitude. A única preocupação do Pai é a de nos fornecer todos os meios para viver, para aprender e para trabalhar.

O período de transtornos cessa tão logo a alma se desprende de seus ídolos terrestres e se resigna. Ela entra então no gozo sereno de seu Ideal. No entanto, duas categorias de ser não conhecem o repouso do outro lado. São primeiramente os maus e aqueles que não quiseram trabalhar em si mesmos enquanto estavam na Terra. Em segundo lugar, são os soldados do Céu. Esses, na verdade, não trabalham para se aperfeiçoarem nem para ganharem o Céu. Eles estão seguros de que verão a Deus um dia. Para eles é indiferente tornarem-se ricos, célebres, poderosos, no físico ou no moral; é a vontade do Pai que lhes interessa. Eles sofrem somente pelos outros, jamais por eles mesmos; o que eles buscam é oferecer aos outros verdadeira alegria. Eles esquecem de si mesmos, não pensam em suas fadigas e, se ganham uma recompensa, não a guardam, dando seus méritos a seus irmãos menos avançados.

Entretanto, quanto aos homens ordinários, estes repousam, mas não por muito tempo. É muito raro que o intervalo entre duas encarnações terrestres atinja mil anos; quanto mais a raça à qual se pertence se aproxima de seu fim; quanto mais o próprio indivíduo for evoluído, mais frequentemente voltam as encarnações. Até existe aqui na Terra um homem que não faz outra coisa senão passar sem interrupção de um corpo usado a um corpo novo; seu espírito nunca teve o tempo de ir até o país dos mortos. A lenda judia de Elias, a lenda cristã de João Evangelista, a lenda muçulmana de “El Khadir” provêm de uma intuição desse fato. Esse homem, verdadeiro Ahasvérus do invisível, é a sementinha imperceptível que prepara o futuro longínquo quando nosso planeta entrará na alegria do Senhor.

É sobre esta Terra que se trabalha com mais resultado. Chegar a uma idade avançada é, pois, um favor. Em nenhum caso tem-se o direito de se dar a morte; o suicídio é um cálculo muito ruim. O espírito passa do outro lado por todos os sofrimentos aos quais ele queria escapar e, além disso, é preciso que ele realize trabalhos suplementares para reparar todas as desordens que seu ato intempestivo determina em torno dele. No entanto, não culpem os suicidas; ninguém conhece os verdadeiros motivos de um ato; e, às vezes, o suicídio é, por assim dizer, fatal.

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Qual deve ser nossa conduta para com as almas dos mortos? De um modo geral, não temos que nos ocupar dos mortos; não temos deveres para com eles. Não nos é proibido pensar neles, continuar a lhes querer bem, lamentá-los; mas não se deve fazê-los voltar, nem pela magia, nem pelos meios mais simples do espiritismo. Se nós somos bons, se eles foram bons, eles voltam por si mesmos, ou melhor, eles não nos deixam.

Em todas as famílias patriarcais, os ancestrais estão presentes em torno do lar; eles assistem seus descendentes e oram por eles, se eles souberam orar na Terra. Aliás, ancestrais, pais e filhos são um só grupo compacto. Se eles se separam segundo o corpo, eles permanecem juntos segundo o espírito, com a condição de que eles todos pratiquem a virtude. O bem reúne, aproxima, harmoniza sempre. O mal, mesmo quando é o mesmo gênero de mal que vários seres cometem, sempre desune e dispersa. As manifestações psíquicas provocadas, quando elas não são produzidas nem por larvas, nem por espíritos de animais, são o feito do duplo, do astral do defunto; quase nunca o eu imortal participa disso. Assim nós estamos na mão de Deus; Ele dispõe de nós à Sua vontade, mas sempre para o nosso aperfeiçoamento. Ele não permite a ninguém deixar o trabalho antes da hora; Ele não permite a nenhum deus espoliar quem quer que seja. O Pai cuida de todos; quando um ser bem-amado nos deixa, simpatias novas o cercam; ele tem guias, ele tem ajudas; e, aonde seu justo destino o levar, é para o seu aperfeiçoamento. Lutem, pois, contra a revolta e contra o desespero. Nossos gemidos prendem nossos mortos à Terra. Deixemo-los partir; eles voltarão; eles voltam mesmo frequentemente de uma maneira muito material. Pois se o bisavô sorri com uma ternura tão profunda a seu bisneto, é porque seus espíritos se reencontram e relembram os anos passados, quando talvez eles tenham sofrido juntos e foram felizes juntos. Mas respeitemos o véu que a Bondade divina lançou felizmente sobre o mistério das existências.

O espiritismo, portanto, para aquele que acredita em Deus, é, no mínimo, inútil. Aliás os espíritos não sabem nada mais do que nós sobre os segredos do universo; eles podem muito bem nos ouvir espontaneamente em caso de urgência. Obedeçamos à palavra do Cristo: “Deixem os mortos sepultar os mortos”. Eles têm anjos que se ocupam deles, lá onde estão, como tinham quando habitavam a Terra. Quanto ao inferno, nenhum ser permanece lá para sempre. O próprio Príncipe do inferno chegará um dia ao arrependimento. E se estivermos preocupados em melhorar a sorte de nossos defuntos, o único procedimento eficaz e normal é o de se entregar com mais fervor à prática da virtude. Do coração do discípulo a Luz se irradia sobre todos os seres aos quais ele se assemelha. Nós formamos famílias, e os membros de cada família permanecem juntos, em espírito, com a condição de que eles se unam pelo amor do mesmo Mestre. E esse amor, creiam, é o único que nada macula e sobre o qual podemos fundar as mais firmes esperanças. Poucos homens o conhecem, mas, a crer nesses privilegiados, nenhum encantamento se aproxima de suas delícias sobrenaturais.

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Assim, a morte é doce para aquele que ama a Deus acima de tudo. Ainda que ele busque longe, nas criptas do esoterismo, elixires e fórmulas para prolongar sua existência, ele tampouco deseja apressar a visita daquela que só o Cristo soube vencer. Sua alegria não é morar aqui ou em outra parte, mas fazer a vontade de seu Mestre. Se vocês soubessem em que beatitude nos lança a menor palavra, a simples presença do Amigo, todos os desertos perderiam seu horror, e todos os infernos, sua desolação. Ora, Jesus mora em nosso coração, de preferência a qualquer outro lugar, a menos se nós nos opusermos à Sua visita.

Que esplêndidas recompensas serão nossas mais tarde! E com que suavidades o Céu interrompe os trabalhos de Seus soldados! Por eles, a morte se despoja de seus terrores, anjos vêm à sua cabeceira, eles os guardam, eles afastam os seres hostis de seus corpos, eles os envolvem em véus, eles os cobrem com suas asas, eles os carregam em seus braços, acima dos abismos, através dos turbilhões, e eles os depositam, adormecidos em um leve sono, sobre os degraus do trono onde se assenta Aquele que eles amam. Não, em verdade, o soldado não pode temer nada de tudo o que se agita entre os limites da criação. Mas eu não gostaria que vocês se pusessem a trabalhar na esperança de uma recompensa; é rumo à única alegria inefável do Espírito que eu desejo vê-los caminhar.

Aquele que doma suas paixões e mantém esses corcéis fogosos na trilha do bem recebe como recompensa tornar-se realmente o senhor delas. Aquele que venceu demônios, o Céu os dá a ele a seguir como servidores, quando eles melhoraram por seus cuidados. Mas quando trabalhamos por qualquer vantagem que seja, estamos no egoísmo e não no Amor.

É preciso se tornar perfeito por simples obediência, para dar alegria ao Amigo. É então que o Céu nos confia o butim; mas, sobretudo, ele Se torna sensível em nós. Ele derrama em nós o puro licor da vida eterna. Ele nos inflama com um ardor sempre crescente. Essas noções místicas não são conceitos filosóficos; são realidades, substâncias ativas, bálsamos penetrantes. Se o Verbo é a Vida, e se nós O possuímos dentro de nós, nosso único trabalho é o de fazer crescer esse germe precioso, cultivar à nossa volta as inumeráveis centelhas de toda ordem que jorram continuamente do coração do Universo. A morte nos aparecerá tal como ela é: um fantasma; e somente a eventualidade de uma diminuição da Luz em nós nos dará esses temores salutares graças aos quais não paramos de subir rumo aos cimos do Imutável.  


                                                   NOTAS:

* Tradução de Anderson Fortes de Almeida.

** Retirado e traduzido do livro “Les Forces Mystiques et la Conduite de la Vie”, Paris, “Amitiés Spirituelles”, 1977. Pág 151 até 166.