domingo, 5 de junho de 2022

TRECHOS DE UMA CARTA DE BAUDELAIRE A WAGNER

 

Um dos autores prediletos da “R+C Artística” (Ordem Rosacruz e Estética do Templo e do Graal) de Joseph Peládan (29/03/1858 – 27/06/1918) foi Richard Wagner (22/05/1813 – 13/02/1883), cuja música possui a capacidade de nos propiciar êxtases estéticos e místicos em poucos acordes. A obra de Wagner, com melodias e enredos míticos e espirituais, revela, e desvela, profundos segredos do Caminho Iniciático, ao discípulo atento e sensível à linguagem do som e dos símbolos. Este arrebatamento é revelado, de uma forma explicita e apaixonada, nesta carta de Charles Baudelaire (9/04/1821 – 31/08/1867) endereçada ao autor de Parsival, postada abaixo.

  

TRECHOS DE UMA CARTA DE BAUDELAIRE A WAGNER**

 

 [Paris], 17 de fevereiro de 1860.

 

CARO SENHOR

 

Antes de tudo, quero lhe dizer que lhe devo o maior prazer musical que jamais experimentei. Estou numa idade em que não mais nos divertimos em escrever aos homens célebres, e eu ainda teria hesitado por muito tempo a lhe testemunhar por carta minha admiração, se todos os dias meus olhos não deparassem com artigos indignos, ridículos, onde se fazem todos os esforços possíveis para difamar o seu gênio. O senhor não é o primeiro homem em razão do qual tive de me envergonhar de meu país. Enfim, a indignação me levou a lhe testemunhar meu reconhecimento. Eu disse a mim mesmo: quero ser distinguido de todos esses imbecis. Na primeira vez que fui aos italiens para ouvir suas obras, estava com bastante má vontade e, devo confessá-lo, cheio de maus preconceitos. Mas posso me desculpar, fui frequentemente muito tolo, ouvi muitas músicas de charlatães de grandes pretensões. Pelo senhor, fui imediatamente conquistado. O que experimentei é indescritível, e, se o senhor se dignar em não rir, tentarei traduzir. Primeiramente, pareceu-me que eu conhecia essa música, e mais tarde, refletindo sobre ela, compreendi de onde vinha essa miragem. Parecia que essa música era a minha e eu a reconhecia, como todo homem reconhece as coisas que ele está destinado a amar. A seguir, o aspecto que me tocou principalmente foi a grandeza, essa música representa o grandioso, ela leva ao grandioso. Sente-se imediatamente enlevado, subjugado. Senti toda a majestade de uma vida mais vasta que a nossa. Experimentei frequentemente um sentimento de uma natureza bastante insólita. É o orgulho, o gozo de compreender, de me deixar penetrar, invadir, volúpia verdadeiramente sensual e que se assemelha àquela de subir aos ares ou de rolar sobre o mar.  Geralmente, essas profundas harmonias me pareciam se assemelhar a esses estimulantes que aceleram o pulso da imaginação. Há por toda parte algo enlevado e que arrebata, alguma coisa que aspira a subir mais alto, algo de excessivo e de superlativo. Por exemplo: servindo-me de comparações tomadas de empréstimo à pintura, suponho diante de meus olhos uma vasta extensão de vermelho escuro. Se esse vermelho representa a paixão, vejo-o chegar gradualmente, por todas as transições de vermelho e rosa, à incandescência da fornalha. Seria difícil, impossível mesmo, chegar a algo ainda mais ardente. E, no entanto, uma última combustão vem traçar um sulco mais branco sobre o branco que lhe serve de fundo. Será, caso queira, o grito supremo da alma que é alçada a seu paroxismo. Assim poderia continuar minha carta interminavelmente. Se o senhor pôde me ler, agradeço-lhe. Não acrescento meu endereço, pois poderia crer, talvez, que eu tenha algo a lhe pedir.


 

** Tradução e revisão de Anderson Fortes de Almeida.  Anderson é o tradutor de duas importantes obras para o Martinismo: “Mística Cristã” de Paul Sédir e “Revelações: Conversações espirituais sobre M. Philippe de Lyon” de Michel de Saint-Martin, ambas publicadas pela editora Clube dos Autores (https://clubedeautores.com.br).