domingo, 4 de setembro de 2022

MEIA-NOITE DE NATAL NO PAÍS DE TRISTÃO

 

Nosso blog têm a honra de publicar um conto do realismo fantástico de Josephin Peládan (29/03/1858 – 27/06/1918), fundador da “R+C Artística” (Ordem Rosacruz e Estética do Templo e do Graal) e dos « Salões Rosacruzes de Arte », cujos livros e textos ainda se encontram inéditos em nosso idioma. Neste conto,  Sâr Mérodack desnuda a alma celta ainda presente na França cristã e ainda apresenta, ao estudante atento,  muitas questões para meditar a partir das situações apresentadas nesta singela narrativa natalina.

 

MEIA-NOITE DE NATAL NO PAÍS DE TRISTÃO

                                        Por   Joséphin Péladan

As ondas batiam fortemente contra os rochedos com um clamor prolongado de batalha. A lua cintilava. Do lençol de neve estendido sobre o campo, as árvores descarnadas se erguiam em ossaturas enigmáticas. O vento soprava tão intensamente pelas frestas da janela que me aproximei da lareira onde crepitava um fogo de giestas.

A velha bretã que me hospedara naquela noite ostentava galhardamente seus oitenta anos. Seus três maridos haviam perecido no mar. Mãe de onze filhos, todos desaparecidos, ela vivia com sua sobrinha, moça calada e esquiva que se apressara em desaparecer à minha chegada.

- Mãe, disse-lhe, certamente a senhora viu coisas do outro mundo, coisas da morte e do purgatório, e deve se lembrar delas hoje, dia de Natal...

A anciã acenou com a cabeça, gravemente afirmativa.

- O que aconteceu com os korrigans, as fadas?... a antiga amizade entre este mundo e o outro cessou... as almas penadas não aparecem mais, implorando preces e missas...eu daria muito, mãe, para ver o que a senhora viu...



Ela voltara para a chama a palma das suas mãos enrugadas, de dedos deformados, e se curvara sob o peso de tristes lembranças. Eu adivinhava singularidades em sua vida, mas como destravar a língua de uma mulher de Leonois?

- Vamos, mãe, diga-nos se ainda se pode ver espíritos, espectros, algo de sobrenatural?

Lentamente e sem me olhar, ela deixou escapar isto:

- Podemos sempre ver os mortos que amamos!

- A senhora então reviu seus maridos?

- Para cada um, fiquei de luto antes mesmo que se soubesse do naufrágio... a cada vez acharam que eu estava louca; mas eu os vi, duros na água, coitados! Então, disseram na região que eu ia à pedra das Fadas, e o decano me recusou por longo tempo a absolvição. Nunca fui à pedra das Fadas, fui ao calvário.



- Ao calvário? Por que ao calvário?

Ela se inclinou e baixando a voz:

- Circunda-se uma velha cruz com os braços e reza-se até que se conheça a sorte dos seus, sua sorte na terra como a do além...

E sentenciosa, recolhida, ela acrescentou com tons de autoridade:

- É o dever da mulher cristã... Deve-se pensar no marido que passa pelo julgamento de Deus e ajudá-lo pelos terços, pelas missas, pelo bem que fazemos aos pobres, em seu nome.

Essas últimas palavras foram pronunciadas imperiosamente. O camponês bretão considera o homem do país[1] de cima (Paris) como um ímpio, negador sistemático de toda misticidade, e ainda que a velha conhecesse meu propósito de ir à missa de meia-noite, ela não cessava de ver em mim um cético.

- Como se sabe, mãe, que aquele por quem se reza foi salvo?

- Sabe-se, na noite de Natal.

Pousando a mão sobre meu braço, para forçar minha atenção, ela disse:

- No momento em que o cura eleva a hóstia de Natal na paróquia do defunto, se, então, estivermos abraçados à cruz de um calvário, vê-se até os infernos e até os céus se o morto sofre ou triunfa!

Pedindo uma explicação, eu não teria permitido que ela continuasse a confiar em mim.  Ela recebera essas ideias como dogmas tradicionais de sua raça. Minha atenção silenciosa lhe agradou pois ela me lançou com um gesto:

- Ouça, filho, ouça a história de minha sobrinha. Ela fugiu à sua chegada e você não pôde ver que, apesar de seus vinte anos, ela parece ter quarenta. Ouça, ela tinha um pretendente, o mais belo e corajoso rapaz da região! Ele foi tentar a sorte na marinha do Estado. Ela o esperou, bem-comportada, como uma religiosa, a coifa tão fechada que nem se viam os cabelos. Ela não dançou sequer uma vez em três anos. Ela contava os dias. Contou mil. Quando ele desembarcou em Brest, estava tão feliz de caminhar sobre a terra, que ele bebeu, bebeu tanto, que arranjou briga. Na confusão, uma garrafa lhe atingiu a têmpora... Oh! A sorte! Ele estava a vinte horas daqui quando bebeu e brigou. Minha sobrinha chorou toda a sua alma, mas ela não abandonou o morto, como teria feito uma noiva das cidades. Para aquele que passa pela cólera e pela bebida, nenhum paraíso! Yvonne é uma boa trabalhadora, ela trabalhou noite e dia, com o que ganhou mandou celebrar missas e distribuiu esmolas. Já faz quatro anos que ela se extenua. Ela vê sem cessar seu pobre noivo se contorcer no fogo do Purgatório e sua agulha trabalha febrilmente: ela morrerá sem colher os frutos do seu trabalho.

A bretã exalou uma queixa profunda.

­­­­- Ela cumpriu seu dever de uma noiva bretã – concluiu.

Essa pobre costureira de aldeia era a irmã sublime de Elizabeth, a santa de Wartburg! Fiquei admirado!

- A senhora quer, mãe, que eu acompanhe sua sobrinha à missa de meia-noite?

- Não meu filho, não precisa.

As onze e meia soaram no relógio de pêndulo de cobre. Escutamos uns leves passos e Yvonne desceu a escada, semelhante, em sua capa, a uma beguina. Ela trocou algumas palavras em baixo bretão com sua tia, sem que eu pudesse encará-la, mas todas as palavras da aldeã se iluminaram. Yvonne iria ao calvário! Assim me fora dado contemplar um belíssimo rito de Fé céltica.

- Então – eu disse com um ar indiferente, abotoando o meu sobretudo – está na hora de sair para garantir um assento.

Lá fora, uma rajada de vento levou meu chapéu de feltro no primeiro passo: a neve, em turbilhão, me cegava. O mar uivava com uma voz rouca gemidos misturados a imprecações misteriosas. De que lado se elevava o calvário? Eu o ignorava e corri desorientado. Minha vida inteira parecia tomada pela minha curiosidade e experimentei uma angústia inexprimível. Contornando uma fazenda, percebi a longa silhueta de Yvonne. Ela caminhava com um passo seco e decidido em direção ao mar. Eu a segui com uma paixão de alucinado. Bruscamente, a enormidade negra e convulsiva do oceano apareceu, e sobre esse horror movente se erigia, elevada por alguns degraus, uma antiga cruz de granito. Segundo essa piedade armoricana que mostra junto ao divino crucificado a Santa Mãe e o discípulo bem-amado, a Virgem e São João estavam sobre cruzeiro. Yvonne subiu os degraus como a sacerdotisa druídica, sua ancestral, se aproximava do dólmen. Ela não se ajoelhou: abriu os braços com um gesto que ainda vejo, um gesto que, desenhado, seria imortal, e os fechou sobre a pedra, apaixonadamente. Assim, atada ao signo redentor, como um náufrago ao único mastro, ela encarnava esse gemido que sai de toda criatura, uma moça verdadeiramente santa, virgem de coração heroico que a morte do Amado não esfriara.

Meio escondido por uma guarita de aduaneiro, eu a contemplava. A neve parou de cair, a lua se desvencilhou das nuvens, Yvonne, a cabeça para trás, fixava com olhos extáticos o Cristo, e o vento agitava sua capa como asas negras. Ela esperava um sinal? Qual? Uma voz interior responderia à sua angústia ou talvez o invisível iria se manifestar?

Subitamente, uma forma alada veio do alto mar e se abateu sobre a cruz: era uma grande gaivota. Ela sacudiu as asas e retomou seu voo, soltando um grito de uma doçura, de uma humanidade que me fez estremecer. Um outro grito, dessa vez sobrehumano, cortou o ar com um tom de gratidão e alegria indizíveis. O braço de Yvonne se destacou da cruz e a grande silhueta sombria afundou. Lancei-me para socorrê-la, ela não me viu, toda entregue a sua ação de graças, pois a gaivota representava a alma, a querida alma de seu noivo saída da geena, resgatada e agora na bem-aventurança. Teria eu visto uma miragem? Eu me fazia essa pergunta quando a bretã se ergueu, saltando os degraus e correu para a aldeia. Lancei- me ao seu encalço e chegamos juntos à igrejinha cintilante de velas, murmurante de cânticos e plena de alegria santa.

Yvonne caiu de joelhos e pude estudar os traços finos e obstinados dessa Elizabeth que havia expiado, como a sobrinha do landgrave, o pecado de seu prometido. E me lembrei de que eu estava então na Cornualha, não longe de Caréol, no país de Tristão.




 

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*Traduzido do texto publicado na revista L’Initiation Tradicionnelle nº 1, de 2019. Revista editada pelo GERME (Groupe d’Études et de Recherches sur le Martinisme et l’Ésotérisme) e fiel ao espírito da revista L’Initiation, fundada em 1888 por Papus e relançada em 1953 por Philippe Encausse.

 

** Tradução e revisão de Anderson Fortes de Almeida.  Anderson é o tradutor de duas importantes obras para o Martinismo: “Mística Cristã” de Paul Sédir e “Revelações: Conversações espirituais sobre M. Philippe de Lyon” de Michel de Saint-Martin, ambas publicadas pela editora Clube dos Autores (https://clubedeautores.com.br).







[1] N. do T. Na França dá-se também o nome “pays” a localidades e regiões.