sábado, 9 de setembro de 2023

ARTE E ETERNIDADE EM JOSEPHIN PÉLADAN

  

ARTE E ETERNIDADE EM JOSEPHIN PÉLADAN*

 Que o espiritualismo seja verdadeiro ou falso, que a alma seja imortal ou não, que a religião seja a expressão da verdade ou somente um sonho, a arte vive de espiritualidade: e as aspirações de eternidade serão sempre as únicas musas.

                                        

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O Sr. Curie não tem nenhuma necessidade de teologia para constatar o fenômeno de radiação que justifica a doutrina espiritualista e, ao provar a unidade da matéria, traz uma surpreendente confirmação da unidade de Deus. Diante de seus aparelhos, ele pode ser materialista, sem que isso prejudique suas descobertas.

O artista, ao contrário, condena-se à esterilidade ao aplicar à sua busca uma fórmula de laboratório. O que ele constata não significa nada: os elementos que lhe fornece a natureza devem atravessar estados sucessivos para se cristalizarem em beleza; o alambique aqui é seu próprio cérebro. Como o modelo, análogo ao carbono, vai-se sublimar em diamante? A que temperaturas de alma será preciso submeter o sombrio mineral para conduzi-lo ao estado luminoso e radiante? Segredo verdadeiramente impenetrável, segredo quase divino essa transformação da forma atual em forma imortal!

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Esteticamente, não há sucessão. Após o gênio vem a mediocridade e, para dizer a verdade, não há escolas, há homens mais ou menos divinos e outros homens aplicados que os seguem.

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A arte da França morre porque ninguém ama a beleza como São Francisco amou a pobreza; perdidamente.

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A história da arte é a história de alguns indivíduos.

Entre eles, colocam-se cinquenta nomes que não valem senão como diminutivos do seu nome! Esses cinquenta servem de escala para medir os gigantes, dos quais, sem eles, não conheceríamos a verdadeira estatura. Natura non facit saltus. Antes e depois do gênio, não se prosterna, mas ainda se admira.

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O privilégio do homem é penetrar pelo pensamento até às essências que o olho interno descobre sozinho, e até à fonte de todas as essências, o Ser infinito ou o Belo absoluto. Manifestá-lo nas formas dele emanadas e que o refletem, tal é o objeto da arte, seu objetivo magnífico.

Lamennais diz acertadamente. A obra de arte digna desse nome tende a encontrar a substância ou forma expressiva da essência. A arte opera por encarnação.

Quando o venerável Ingres nos mostra Joana d’Arc armada exatamente conforme a moda das armas em 17 de julho de 1429, ele não faz nada de bom nem de mau. A essência de seu tema é outra. Qual é a forma essencial de uma donzela inspirada, que, depois de levar seu país à vitória em nome de Jesus rei do céu, será queimada aos dezenove anos?

Estandarte, espada, armaduras, acessórios sem interesse. Joana d’Arc é uma ideia: qual é o corpo dessa ideia, a face dessa ideia? Ela é uma jovem e faz ato de homem; ela é do sexo de seu ato? Não. É somente uma donzela? Também não. Será São Jorge? Tampouco. Um anjo? Não.

Não posso enumerar a sucessão de imagens pelas quais o artista chegará a conceber a boa Lorena; mas afirmo que se trata de desenhar um rosto, depois um corpo, de encontrar enfim um gesto e que o problema é puramente expressivo e plástico.

O Moisés de Miguel Ângelo desorienta nossas noções preconcebidas. Ninguém explicará satisfatoriamente essa obra, tão bizarra em sua roupagem, e, no entanto, ninguém hesitará em reconhecer o personagem.

Os ortodoxos não gostam do Moisés, acham revoltantes os nus da capela dos Médicis e os denominam “o caos e a matéria, o orgulho e a volúpia que a Renascença parece ter querido glorificar”.

Já indiquei o quanto a sacristia calunia o ardente espiritualismo da Renascença.

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O personagem da arte difere do personagem vivo como o ator em cena difere do homem privado. A moldura ou o pedestal separa este mundo do mundo da ficção, como uma rampa.

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O que constitui a beleza de uma estátua é exatamente o que separa a obra do modelo; e essa distância se dá primeiramente entre o homem geral ou serial e o indivíduo; em seguida entre o homem serial e o personagem representado; enfim, entre o personagem e a ideia maior que ele simboliza. Suponhamos que se trate de uma estátua de Prometeu, sua forma será bela, animalmente; além disso, ela será um pouco colossal, já que ele é um demônio entre o efêmero e o olímpico; enfim, será preciso que ela responda à audácia que roubou o fogo, à caridade que o deu, e sobretudo à vontade que o suplício do Cáucaso não pôde esgotar.

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O diagnóstico médico não traz nenhum esclarecimento para o crítico. Miguel Ângelo era muito bilioso, grande descoberta! Torregiani lhe esmagou o nariz, e o que isso contribui para explicar o teto da Capela Sistina?

O gênio trabalha apesar da doença e não por causa dela. Bazzi (1) mereceu seu cognome? O que isso importa para O êxtase de Santa Catarina e para O casamento de Alexandre e Roxana?

Aqueles que viveram na intimidade dos homens de gênio conhecem suas manias, seus tiques, e sabem que isso são acidentes, sem relação com suas obras.

A faculdade criadora, desde que ela exista, domina o ser inteiramente; ela mantém aqueles que a possuem em estado de perpétua gestação.

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A ciência oferece verdadeiramente uma sequência adicional que coloca o que veio por último na posse de todo o adquirido pelos que lhe precederam: o mais fraco naturalista assimila as descobertas de Lavoisier e de Bertholet e, a não ser em seus métodos, a ciência não parece poder retroagir.

A arte, ao contrário, se encarna, vive e morre em cada gênio. Giotto é toda uma arte, e Rafael, por mais perfeito que seja, não possui as qualidades do trecentista.

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A beleza é única em seus caracteres essenciais. A mesma busca leva ao mesmo resultado.

As obras-primas têm entre si um ar de família e esse ar constitui a quintessência da arte. Com a gama musical, Palestrina tudo exprimiu, assim como Wagner. Com a forma humana, desde a Esfinge colocada no limiar do deserto até o São João, desde a deusa de Tebas até a Madona, tudo foi dito.

O Cristus Judex de Miguel Ângelo com a barba seria o Zeus tonitruante, como os personagens da Disputa do Santo-Sacramento poderiam se tornar gregos e os da Escola de Atenas cristãos. O São João a meio corpo não seria uma esfinge com braços?

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Peço perdão à Universidade atual, a qualidade que faz uma obra-prima de um pote, materialmente semelhante a um outro, essa inflexão de linha, essa inefável modulação do contorno que nenhuma regra exprime e que em suma não existe senão pelo divino acaso da inspiração é imaterial como a alma que a percebe.

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Nem as particularidades locais e momentâneas da civilização, nem os traços animais e coletivos da humanidade possibilitam a beleza. Para compreender uma obra esteticamente, é preciso esquecer a vida do artista e da época. Se Leonardo tivesse querido nos informar sobre Louis Le More (2), e Rafael sobre Leão X, eles teriam pintado diferentemente.

Esses mestres não eram cronistas e não se propunham de forma alguma a fornecer documentos aos historiadores; eles viam um mundo ideal que nunca existiu senão em seus espíritos e pintaram suas visões. O artista pertence a seu tempo tão somente pela natureza de suas visões, que participam, não do pensamento geral, mas dessa minoria intelectual que é sempre a elite. Rafael fez sua obra-prima com a Escola de Atenas, porque o humanismo foi o verdadeiro misticismo da Renascença.

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A Beleza opera por meio da volúpia. Uma obra-prima aumenta em nós a vida da graça, espelho magnífico que ilumina e dilata nossa personalidade. Primeiramente, a Beleza nos dissuade de toda vulgaridade, ela nos inculca a ideia de perfeição e harmonia. A Beleza é o mistério para os olhos, ela é o verdadeiro tornado sensível, ela é o bem visível, ela é o rosto de Deus.

Nós vivemos intelectualmente de mistério como Fausto, nós vivemos animicamente de aspirações à felicidade e à justiça como Prometeu; e a arte, criada pela religião, torna-se a nova religião para os homens que cessam de crer sem cessar de ser homens e de sentir.

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* * Textos selecionados e traduzidos de L’esthétique idéaliste, in: PÉLADAN, Joséphin. “Les deux esthétiques – Théorie de la beauté”. Casimiro livres, 2022. Tradução: Anderson Fortes de Almeida.


Notas do tradutor:

1) trata-se do pintor italiano Giovanni Antonio Bazzi (1477 – 1549), cognominado Il Sodoma (O Sodoma) segundo Giorgio Vasari em sua obra As Vidas dos Melhores Pintores, Escultores e Arquitetos, publicada em 1568.

2) Ludovico Maria Sforza (1452 – 1508), cognominado Il Moro (O Mouro), regente do ducado de Milão e mecenas de Leonardo da Vinci, a quem encomendou o afresco conhecido como A Santa Ceia ou A Ceia do Senhor (em italiano: L’Ultima Cena) para o convento dominicano de Santa Maria delle Grazie.