Nosso blog têm a honra de publicar um conto do
realismo fantástico de Josephin Peládan (29/03/1858 – 27/06/1918),
fundador da “R+C Artística” (Ordem Rosacruz e Estética do Templo e do Graal) e
dos « Salões Rosacruzes de Arte », cujos livros e textos ainda se
encontram inéditos em nosso idioma. Neste conto, Sâr Mérodack desnuda a
alma celta ainda presente na França cristã e ainda apresenta, ao estudante atento,
muitas questões para meditar a partir
das situações apresentadas nesta singela narrativa natalina.
MEIA-NOITE DE NATAL NO PAÍS DE TRISTÃO
Por Joséphin Péladan
As ondas batiam fortemente contra os rochedos com um clamor prolongado de batalha. A lua cintilava. Do lençol de neve estendido sobre o campo, as árvores descarnadas se erguiam em ossaturas enigmáticas. O vento soprava tão intensamente pelas frestas da janela que me aproximei da lareira onde crepitava um fogo de giestas.
A velha bretã que me hospedara
naquela noite ostentava galhardamente seus oitenta anos. Seus três maridos
haviam perecido no mar. Mãe de onze filhos, todos desaparecidos, ela vivia com
sua sobrinha, moça calada e esquiva que se apressara em desaparecer à minha
chegada.
- Mãe, disse-lhe, certamente a
senhora viu coisas do outro mundo, coisas da morte e do purgatório, e deve se
lembrar delas hoje, dia de Natal...
A anciã acenou com a cabeça,
gravemente afirmativa.
- O que aconteceu com os korrigans,
as fadas?... a antiga amizade entre este mundo e o outro cessou... as almas
penadas não aparecem mais, implorando preces e missas...eu daria muito, mãe,
para ver o que a senhora viu...
- Vamos, mãe, diga-nos se
ainda se pode ver espíritos, espectros, algo de sobrenatural?
Lentamente e sem me olhar, ela
deixou escapar isto:
- Podemos sempre ver os mortos
que amamos!
- A senhora então reviu seus
maridos?
- Para cada um, fiquei de luto
antes mesmo que se soubesse do naufrágio... a cada vez acharam que eu estava
louca; mas eu os vi, duros na água, coitados! Então, disseram na região que eu
ia à pedra das Fadas, e o decano me recusou por longo tempo a absolvição. Nunca
fui à pedra das Fadas, fui ao calvário.
Ela se inclinou e baixando a
voz:
- Circunda-se uma velha cruz
com os braços e reza-se até que se conheça a sorte dos seus, sua sorte na terra
como a do além...
E sentenciosa, recolhida, ela
acrescentou com tons de autoridade:
- É o dever da mulher
cristã... Deve-se pensar no marido que passa pelo julgamento de Deus e ajudá-lo
pelos terços, pelas missas, pelo bem que fazemos aos pobres, em seu nome.
Essas
últimas palavras foram pronunciadas imperiosamente. O camponês bretão considera
o homem do país[1] de
cima (Paris) como um ímpio, negador sistemático de toda misticidade, e ainda
que a velha conhecesse meu propósito de ir à missa de meia-noite, ela não
cessava de ver em mim um cético.
- Como se sabe, mãe, que
aquele por quem se reza foi salvo?
- Sabe-se, na noite de Natal.
Pousando a mão sobre meu
braço, para forçar minha atenção, ela disse:
- No momento em que o cura
eleva a hóstia de Natal na paróquia do defunto, se, então, estivermos abraçados
à cruz de um calvário, vê-se até os infernos e até os céus se o morto sofre ou
triunfa!
Pedindo uma explicação, eu não
teria permitido que ela continuasse a confiar em mim. Ela recebera essas ideias como dogmas
tradicionais de sua raça. Minha atenção silenciosa lhe agradou pois ela me
lançou com um gesto:
- Ouça, filho, ouça a história
de minha sobrinha. Ela fugiu à sua chegada e você não pôde ver que, apesar de
seus vinte anos, ela parece ter quarenta. Ouça, ela tinha um pretendente, o
mais belo e corajoso rapaz da região! Ele foi tentar a sorte na marinha do
Estado. Ela o esperou, bem-comportada, como uma religiosa, a coifa tão fechada
que nem se viam os cabelos. Ela não dançou sequer uma vez em três anos. Ela
contava os dias. Contou mil. Quando ele desembarcou em Brest, estava tão feliz
de caminhar sobre a terra, que ele bebeu, bebeu tanto, que arranjou briga. Na
confusão, uma garrafa lhe atingiu a têmpora... Oh! A sorte! Ele estava a vinte
horas daqui quando bebeu e brigou. Minha sobrinha chorou toda a sua alma, mas
ela não abandonou o morto, como teria feito uma noiva das cidades. Para aquele
que passa pela cólera e pela bebida, nenhum paraíso! Yvonne é uma boa
trabalhadora, ela trabalhou noite e dia, com o que ganhou mandou celebrar
missas e distribuiu esmolas. Já faz quatro anos que ela se extenua. Ela vê sem
cessar seu pobre noivo se contorcer no fogo do Purgatório e sua agulha trabalha
febrilmente: ela morrerá sem colher os frutos do seu trabalho.
A bretã exalou uma queixa
profunda.
- Ela cumpriu seu dever de
uma noiva bretã – concluiu.
Essa pobre costureira de
aldeia era a irmã sublime de Elizabeth, a santa de Wartburg! Fiquei admirado!
- A senhora quer, mãe, que eu
acompanhe sua sobrinha à missa de meia-noite?
- Não meu filho, não precisa.
As onze e meia soaram no
relógio de pêndulo de cobre. Escutamos uns leves passos e Yvonne desceu a
escada, semelhante, em sua capa, a uma beguina. Ela trocou algumas palavras em
baixo bretão com sua tia, sem que eu pudesse encará-la, mas todas as palavras
da aldeã se iluminaram. Yvonne iria ao calvário! Assim me fora dado contemplar
um belíssimo rito de Fé céltica.
- Então – eu disse com um ar
indiferente, abotoando o meu sobretudo – está na hora de sair para garantir um
assento.
Lá fora, uma rajada de vento
levou meu chapéu de feltro no primeiro passo: a neve, em turbilhão, me cegava.
O mar uivava com uma voz rouca gemidos misturados a imprecações misteriosas. De
que lado se elevava o calvário? Eu o ignorava e corri desorientado. Minha vida
inteira parecia tomada pela minha curiosidade e experimentei uma angústia
inexprimível. Contornando uma fazenda, percebi a longa silhueta de Yvonne. Ela
caminhava com um passo seco e decidido em direção ao mar. Eu a segui com uma
paixão de alucinado. Bruscamente, a enormidade negra e convulsiva do oceano
apareceu, e sobre esse horror movente se erigia, elevada por alguns degraus,
uma antiga cruz de granito. Segundo essa piedade armoricana que mostra junto ao
divino crucificado a Santa Mãe e o discípulo bem-amado, a Virgem e São João estavam
sobre cruzeiro. Yvonne subiu os degraus como a sacerdotisa druídica, sua
ancestral, se aproximava do dólmen. Ela não se ajoelhou: abriu os braços com um
gesto que ainda vejo, um gesto que, desenhado, seria imortal, e os fechou sobre
a pedra, apaixonadamente. Assim, atada ao signo redentor, como um náufrago ao
único mastro, ela encarnava esse gemido que sai de toda criatura, uma moça
verdadeiramente santa, virgem de coração heroico que a morte do Amado não
esfriara.
Meio escondido por uma guarita
de aduaneiro, eu a contemplava. A neve parou de cair, a lua se desvencilhou das
nuvens, Yvonne, a cabeça para trás, fixava com olhos extáticos o Cristo, e o
vento agitava sua capa como asas negras. Ela esperava um sinal? Qual? Uma voz
interior responderia à sua angústia ou talvez o invisível iria se manifestar?
Subitamente, uma forma alada
veio do alto mar e se abateu sobre a cruz: era uma grande gaivota. Ela sacudiu
as asas e retomou seu voo, soltando um grito de uma doçura, de uma humanidade
que me fez estremecer. Um outro grito, dessa vez sobrehumano, cortou o ar com
um tom de gratidão e alegria indizíveis. O braço de Yvonne se destacou da cruz
e a grande silhueta sombria afundou. Lancei-me para socorrê-la, ela não me viu,
toda entregue a sua ação de graças, pois a gaivota representava a alma, a
querida alma de seu noivo saída da geena, resgatada e agora na bem-aventurança.
Teria eu visto uma miragem? Eu me fazia essa pergunta quando a bretã se ergueu,
saltando os degraus e correu para a aldeia. Lancei- me ao seu encalço e
chegamos juntos à igrejinha cintilante de velas, murmurante de cânticos e plena
de alegria santa.
Yvonne caiu de joelhos e pude
estudar os traços finos e obstinados dessa Elizabeth que havia expiado, como a
sobrinha do landgrave, o pecado de seu prometido. E me lembrei de que eu estava
então na Cornualha, não longe de Caréol, no país de Tristão.
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*Traduzido
do texto publicado na revista L’Initiation Tradicionnelle nº 1, de 2019.
Revista editada pelo GERME (Groupe d’Études et de Recherches sur le Martinisme
et l’Ésotérisme) e fiel ao espírito da revista L’Initiation, fundada em 1888
por Papus e relançada em 1953 por Philippe Encausse.
** Tradução e revisão
de Anderson Fortes de Almeida. Anderson é o tradutor de duas
importantes obras para o Martinismo: “Mística Cristã” de Paul Sédir e “Revelações:
Conversações espirituais sobre M. Philippe de Lyon” de Michel de
Saint-Martin, ambas publicadas pela editora Clube dos Autores
(https://clubedeautores.com.br).
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